Pelo direito de, simplesmente, amar
O convite da jornalista Ruth Joffily para escrever o prefácio deste livro a
respeito da homossexualidade originou em mim uma reflexão mais ampla sobre a
questão. Como psiquiatra, com mais de 20 anos de prática e estudos em relação à
natureza humana, falar sobre a complexidade da sexualidade humana é um grande
desafio. Até hoje o assunto homossexualidade é tabu e tem uma compreensão
controversa em diversos sentidos. Explicações para esse tipo de orientação
sexual promoveram várias correntes de pensamento que, por sua vez, geraram
entendimentos diferentes. Para contextualizar melhor a essência da sexualidade
humana, nas suas variadas facetas de expressão, percebi ser necessário que se
pondere mais profundamente sobre o real e o irreal, do ponto de vista da
cultura e do comportamento.
Desde os primórdios da história da
civilização humana – vista aqui como núcleo social, e conforme a estruturação
de uma dada cultura – aparecem relatos que dão conta da preferência
homossexual. Em civilizações como a grega e a romana, não era incomum membros
influentes serem homossexuais e, em geral, socialmente bem aceitos. Cito isto
apenas como um preâmbulo a esse complexo assunto, sem a intenção de um
detalhamento cronológico ou histórico, mas sim para assinalar a existência
deste comportamento social.
Através dos tempos, a posição “ser
homossexual” acabou trazendo muito sofrimento para homossexuais e afins. Pois,
toda vez que se nega algo que é real, desencadeia-se um sofrimento, como um
preço a ser pago por não se aceitar o que faz parte de uma realidade. Goste-se
ou não, abomine-se tal ideia, tenha-se nojo ou medo – o fato é que a
homossexualidade faz parte de uma das características sexuais intrínsecas ao
ser humano.
Quantos homossexuais tiveram de
negar ou esconder sua sexualidade, para preservar sua privacidade ou mesmo
resguardar sua vida profissional e assim manter a aceitação em um meio social
mais amplo? Na trajetória de cada um deles, seus conflitos e dificuldades
geralmente foram vividos solitariamente, em nome de se sustentar uma imagem
aceita dentro da chamada “realidade social”. Mas em que bases tal realidade foi
fomentada?
O convívio social, em uma dada
cultura, determina o que é certo e errado ou o que é totalmente inadequado e
até anormal – e essas regras estão geralmente ligadas aos costumes e crenças
religiosas dominantes. Outras vezes, certos regimes políticos acabam por impor
comportamentos sociais e ditar normas consideradas aceitáveis para o convívio
em uma sociedade. Ou seja: a definição do que é certo ou errado e até o que é
anormal respectivo à sexualidade humana sempre acabou se fundamentando em
dogmas religiosos, em normas psicossexuais, ou em padrões estabelecidos por
determinada cultura ou impostos pelo regime político predominante? Cabe então
perguntar: e na sociedade contemporânea? De que forma evoluiu o entendimento da
sexualidade humana?
A
constante preocupação com a perpetuação da espécie fatalmente foi o fator
preponderante no determinismo da heterossexualidade como a expressão da
sexualidade humana mais aceitável e a esperada através das épocas. Além, é
claro, dos interesses socioeconômicos que essa questão sutilmente encerra –
isto é, a necessidade de genuínos herdeiros de sangue na defesa de patrimônios.
A família tradicional – o clã – é fruto de todos esses anseios. Mas o fato é
que nem toda essa angústia antiga quanto à preservação de nossa espécie
conseguiu inibir a manifestação homossexual.
Como especialidade médica, a
Psiquiatria se incumbe de determinar o limite entre o normal e o patológico. Ou
seja: o que se considera como normal ou não normal acaba sendo intrínseco a um
aspecto temporal, que em si mesmo só é dinâmico e tem a ver com a evolução dos
costumes e as mudanças nas formas de pensar e perceber as coisas. E mesmo que,
a princípio, isto possa parecer apenas mais um posicionamento a favor da
homossexualidade, trata-se na verdade de questionamento do que seja,
justamente, a sexualidade humana. Na sua evidência, ela é multifacetada.
São vários e diferentes os aspectos
que acabam compondo a complexidade do ser humano como ser sexual – e uma dessas
manifestações é o homossexualismo. Assim como existem outras naturezas
inerentes: o transexualismo o hermafroditismo – enfim, um determinismo, e não uma escolha. Em outras
palavras: nasce-se assim. A despeito de existirem opiniões avessas a variantes
que extrapolem um padrão esperado, entretanto, o fato é que nosso cotidiano
contradiz tal expectativa.
A espécie humana é essencialmente
social, com capacidade para amar e necessita desenvolver sua afetividade. Em
qualquer nível, os relacionamentos humanos devem ser, acima de tudo, afetuosos.
A aceitação do diferente é o grande princípio para a convivência harmoniosa.
Ser diferente não se reduz tão somente à opção sexual. Homens e mulheres são
diferentes. Jovens e velhos são diferentes. Existem diferentes etiologias
raciais. Lidar com o diferente é, portanto, um exercício constante no
desenvolvimento de nossa humanidade. É ser civilizado. É estar
socializado.
Na heterossexualidade – momento do
encontro mais íntimo, em todos os sentidos, entre homens e mulheres – saber
conviver com as diferenças de cada um, respeitá-las e entender suas
necessidades e expectativas é essencial no desenvolvimento de um relacionamento
bem-sucedido. Mais do que o aspecto do bom entendimento sexual, a cumplicidade,
o amor, a compreensão mútua e a amizade formam a base sólida para um
relacionamento feliz.
Todo ser humano anseia ser amado e
aceito como individualidade. O caminho de cada um se faz na liberdade de suas
escolhas. Respeitar essas escolhas é o que se almeja, em uma sociedade
realmente coerente na sua acepção. Todo ser humano busca ser feliz e realizado.
Aliás, ser feliz deve ser seu maior objetivo existencial. Um sistema social
saudável deve garantir esse direito a cada um.
A concepção do que seja um casal
mudou: atualmente, ele também pode se constituir de dois indivíduos do mesmo
sexo. Isso acarretou mudanças na jurisprudência de vários países, a fim de
poder atender a todos. Pois, mesmo no caso da homossexualidade – quando o foco
já não é somente a conquista sexual – a busca por um relacionamento estável se
fundamenta no companheirismo e na afetividade, características que são, no fim
das contas, bem humanas. Ao se estabelecer legitimidade a essa aliança de
parceria, a estruturação familiar adquiriu outras concepções e o núcleo
familiar se transformou.
Finalmente: o que saímos ganhando ao
permitir uma expressividade mais ampla da sexualidade humana? A resposta é
clara: a própria evolução da nossa sexualidade desencadeou esse processo e,
graças a isso, acabamos por nos humanizar mais, ao compreender que exercer esse
direito é, em si, simplesmente amar.
Dra. Lilian Claudia Almeida de Souza -
Psiquiatra
Especialização em Psiquiatria pela UFRJ.
A autora agradece a colaboração do jornalista
Marco Antonio Gay e a assessora de imprensa Laura Oldenburg na realização do livro.
Marco Antonio Gay e a assessora de imprensa Laura Oldenburg na realização do livro.
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