Carlos Tufvesson – estilista e militante de
direitos humanos
Carlos Tufvesson herdou o talento da mãe, a estilista Glorinha Pires Rebelo. Mas não hesitou em aceitar o convite do prefeito Eduardo Paes para chefiar a Coordenadoria Especial da Diversidade Sexual, no Rio de Janeiro.
Para muitos, é apenas o primeiro passo de uma
promissora trajetória política ... Tufvesson prefere ser cauteloso: numa
conversa franca e muito informativa, ele fala das dificuldades que tem
enfrentado. Mas não se intimida – e garante que para ele “isto não é um
emprego: é uma causa de vida.”
A homofobia não é um fenômeno atual. Mas por que
ela agora está tão visível?
Antes de mais nada, porque atualmente existe mais informação – tudo o que acontece tem muito mais visibilidade. Mas tem também o outro lado da questão: de uns tempos para cá, surgiram discursos que estão permitindo a legitimação da homofobia. Se você for pesquisar, vai ver que isto aconteceu na Europa, nas décadas de 1980 e 1990, quando existia um discurso de extrema-direita legitimando, tanto da parte autoridades eclesiásticas quanto dos parlamentares. E aqui no Brasil não é muito diferente. É como se eles, agressores, se sentissem legitimados pelos poderes constituídos assegurando a sua impunidade.
Carlos Tufvesson |
Tempos atrás, assisti no [site de vídeos] Youtube a uma coisa que
me deixou impressionado: um rapaz evangélico, parecendo ter uns 19 anos – e
muito bonito, por sinal – que dizia: “Eu estava passando na frente de um centro
espírita e, na hora, Deus-Jesus apareceu na minha frente e me mandou destruir
aquilo, porque todos ali eram homossexuais!” E ele foi lá: entrou e quebrou o
centro inteiro – que estava vazio, na hora. No vídeo, ele parecia um daqueles
homens-bomba islâmicos, que gravam uma mensagem para a família. Certamente, ele
colocou aquilo no Youtube e foi direto para a Igreja, rezar!
Antes, não havia isso. O sincretismo religioso sempre existiu, entre
nós. Mas este fundamentalismo religioso parece ter sido estimulado como uma
força política, para garantir votos. Por isso, eu sinto que existe um pouco de fascismo no ar. Acho que os
extremos se equivalem: a extrema-esquerda e a extrema-direita. Ambas tolhem a
liberdade humana e os direitos civis. A questão, no fundo, é simples: nenhum
ser humano é igual ou melhor que o outro, e isso é muito importante para as
pessoas entenderem, e simplesmente aprenderem a se respeitar, umas às outras.
Você acha que o homofóbico tem a sexualidade mal
resolvida?
É óbvio que o homofóbico tem uma sexualidade mal resolvida. Eu acho que, na verdade, essas pessoas atacam os homossexuais porque não têm uma definição sobre a sexualidade delas mesmas, e acabam agredindo quem se define. É medo do diverso. Do desconhecido. Que causa insegurança e reação de ataque em quem não está seguro de si e de sua sexualidade.
Mas é importante
gente não confundir o machismo com a homofobia. A homofobia, por definição, é o
racismo de origem sexual. Tanto que o projeto de lei que está no Senado se
baseia nisso: se o racismo é crime no Brasil, a homofobia também tem que ser.
Assim como o preconceito que nós testemunhamos nas últimas eleições, contra os
nordestinos. Isto são fatos inaceitáveis, porque ferem o princípio da dignidade
humana – e não dá para o pessoal, lá no Congresso Federal continuar fingindo
que isto não existe.
Mas eu vejo o grande problema hoje em
dia é uma coisa mais complexa, que se chama heteronormatividade.
Quer dizer, vivemos em um mundo que funciona como se o padrão normal fosse ser
heterossexual. Todos os conceitos e premissas são estabelecidos como se existisse
alguma normalidade no ser humano. Como se nós não fôssemos absolutamente
assimétricos – e, numa mesma pessoa, um braço não fosse maior do que o outro. Esta é a beleza do ser humano. Então,
não podemos deixar que nos etiquetem de alguma coisa.
Então você acha que não existe uma coisa chamada
“normalidade” como referencia?
Sinceramente, não consigo encontrar uma definição para normalidade. Aliás, tento fugir disso, porque nada me parece mais chato do que ser normal. Tudo isto tem muito a ver com um ranço de radicalismo ideológico – que prega que a sociedade tem que ser igual, e ninguém pode ser diferente. Mas eu acho que todos nós somos diferentes. A beleza do ser humano é justamente esta : todos nós nos completamos. Eu estudei com uma menina japonesa – que era uma graça – e ela me disse que no Japão existe um ditado que define isto, mais ou menos assim: “A unha que levanta é a mesma unha que amassa”.
Uma coisa muito forte para mim foi a
capa do disco do [conjunto de rock inglês]
Pink Floyd, que eu vi (mas também ouvi) quando tinha 12 ou 14 anos. Era o
desenho de um muro feito de tijolos brancos – mas havia um tijolo amarelo. Eu
olhava aquilo e pensava: “Meu Deus! Eu não quero ser mais um tijolo na
parede!”. E desde então tem sido assim: eu nunca quis ser mais um tijolo na
parede – eu queria ser o tijolo amarelo. Na verdade, eu acho que a parede
deveria ser toda colorida. Porque cada pessoa vai encontrar a felicidade de uma
maneira...
Então você acha que a vida do heterossexual é mais
fácil que a vida do homossexual, dentro da sociedade?
Sem dúvida! Mas só até certo ponto: no fim das contas, toda sociedade é preconceituosa e repressora. Por isso, acredito que o preconceito não existe apenas contra os gays, mas contra uma série de coisas: preconceito contra os mais favorecidos, contra os menos favorecidos, contra tricolores, contra flamenguistas, contra judeus... E assim por diante: a gente vai criando uma série de preconceitos, tentando excluir pessoas. Sem falar no tremendo preconceito contra a mulher, por parte do macho latino-americano, que é tratada como minoria mesmo sendo maioria numérica.
Como foi para você ser convidado para assumir essa Coordenadoria [Especial de Assuntos da Diversidade Sexual]?
Uma tremenda responsabilidade! Eu fui surpreendido pelo convite [em novembro de 2010] do prefeito [do Rio de Janeiro, Eduardo Paes]. Vindo da militância autônoma de direitos civis e humanos no país e hoje estando no executivo, eu posso ver a possibilidades de fazer reais mudanças em termos de políticas públicas que beneficiarão toda a sociedade como estamos fazendo no Programa Rio sem Preconceito.
Quais são os principais desafios que esta luta por mais direitos vai precisar enfrentar?
Neste momento, o que me preocupa mais é a questão do populismo que voltou muito forte no Brasil. Hoje, na verdade, não importa mais a ação que eu faça no Governo, mas a comunicação que gera informação. Mas, por outro lado, a livre expressão da comunicação vem sendo atacada... No fundo, é muita jogada política, o tempo inteiro: o populismo joga com a ignorância das massas, instrumentaliza a informação.
Resultado: acaba não se fazendo nada –
e, por conta disso, morre um homossexual por dia, neste país.
Como você analisa a questão do movimento gay?
A bandeira do movimento gay é a última existente no planeta, desde a questão do divórcio. É a última e está pendente, presa por uma série de questões, não apenas da Igreja, mas também por uma força parlamentar que prefere ignorar que a cada dia um homossexual brasileiro é morto, que prefere ignorar que adolescentes gays se suicidam; ignorar o bullying... Enfim: ignorar uma realidade de 20 milhões de brasileiros que são homossexuais e têm direito aos seus direitos civis garantidos. Quer dizer, não faz sentido você ter mais direitos do que eu, se nós dois somos cidadãos brasileiros.
Na verdade, a própria definição da sexualidade é
bem mais complexa do que o senso comum imagina, não é mesmo?
Exatamente! Inclusive, o Ministério da Saúde fez uma pesquisa em que estabelece uma categoria chamada HSH, para o homem que faz sexo com outro homem – e que não é necessariamente homossexual. Ele pode ser casado e, a cada dois meses, não importa, transa com outro homem. Já ser homossexual é ter toda uma orientação bem definida: é ter seu desejo (o tesão, a libido) voltado para o mesmo sexo. O cara que é HSH flutua na faixa de 33%, considerando-se que os homens representam 46% da população. Ou seja, estamos falando de um terço da população. Se os parlamentares não entenderem dados como estes, do Ministério da Saúde, e continuarem a fazer proselitismo de palanque, eu acho que este país não tem muito futuro. Porque isto não tem a ver com a religião de ninguém: é uma questão laica, de reconhecimento de direito, ou seja, de cidadania – e é assim que ela precisa ser encarada.
A homossexualidade é uma questão genética?
Sim, ela é genética. A OMS [Organização Mundial da Saúde] retirou-a do rol de doenças justamente por causa disso: porque é genético. Mas ainda não está comprovado se este gene é da mãe ou do pai. Aqui já entra uma teoria minha – e eu não sou cientista... (risos) Eu acho que este gene é desenvolvido também em função de fatores comportamentais e culturais, ou seja, em função de expoentes da vida. Vou dar um exemplo, que eu descobri outro dia: a herpes também é genética. Você tem o vírus, mas ele pode não se desenvolver.Ou seja, você pode ter contato com ela, e nunca desenvolver... Desde então, nenhum profissional de saúde, médico, psicólogo, psiquiatra, pode tratar a homossexualidade como doença, sob o risco de perder o seu CRM [registro do Conselho Regional de Medicina].
Em suma, a homossexualidade deve ser encarada de
uma forma muito mais séria...
Sem dúvida, porque não se trata de uma questão de “opção”. Aliás, se fosse assim, seria uma opção bem masoquista. Algo assim como: “Eu quero apanhar de pitboy!”. Ou então: “Quero ver gente correndo atrás de mim me xingando de sei-lá-o-quê”. Graças a Deus, eu tive uma família que sempre soube entender muito bem, mas isto é um caso raríssimo. E sempre tive muita personalidade para me impor na vida, porque eu nunca me senti fazendo nada de errado. Inclusive, quero deixar claro o seguinte: a união entre dois homens não é proibida por lei no Brasil!
Querem ver? O
casamento é um artigo do Código Civil – ao contrário do que foi dito, na última
campanha presidencial, quando os dois candidatos (embora ex-ministros da
República) disseram que casamento é assunto religioso. Não é: casamento é
Código Civil, está no artigo 1511! E eu, como cidadão brasileiro, tenho o
direito de me valer deste artigo. Se não existe, no próprio Código, proibição
para a união entre duas pessoas do mesmo sexo, nada impede, pela lei
brasileira, que elas se unam em matrimônio. Exemplo maior disso foi a
manifestação unânime do Supremo Tribunal Federal a respeito da união entre
casais do mesmo sexo (ADPF 132) deixando claro que cabe ao Estado oferecer a
proteção da lei igualmente a todos os cidadãos de acordo com o art. V da
Constituição Federal. A isso se chama os princípios da igualdade e da dignidade
da pessoa humana.
Como você analisa os avanços (ou retrocessos) do movimento no Brasil,
nos últimos anos?
No governo Fernando Henrique, nós tínhamos pelo menos alguns projetos de lei e na primeira legislatura do Governo Lula também. Por exemplo: Laura Carneiro tinha um projeto de união civil que nunca foi apoiado. Sei lá, eu fico achando que, por trás de tudo isso, existe um raciocínio do tipo: isto é uma coisa que só “partido x” pode fazer. Então, como eles não fazem, ninguém mais faz. Na verdade é o seguinte: nós não tivemos movimentação legislativa nestes últimos oito anos, em que o Governo teve uma forte maioria nas casas legislativas, inclusive para barrar coisas muito pouco populares. Pois eu nunca vi, infelizmente, o presidente Lula usando esta popularidade para esclarecer a população a respeito de preconceito ou homofobia. Nenhum presidente no Brasil até hoje fez isto.
Carlos Tufvesson em evento da Coordenadoria
Especial de Assuntos da Diversidade Sexual
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No Rio de Janeiro, se você for descriminado em qualquer estabelecimento comercial – por exemplo, se você estiver num restaurante e o maitre ou o garçom disserem “Com licença, você está beijando seu namorado! Portanto, pode se retirar porque está incomodando minha clientela...”, você pode fazer uma queixa à Prefeitura – com base na lei municipal 2475 de 1996. Caso fique comprovada a violação à norma, o restaurante poderá, após apresentação de defesa, ser multado ou até perder o alvará. No entanto, se o cidadão não sabe disto, ele não pode fazer a queixa à Prefeitura. Porque o poder público só pode se manifestar quando é solicitado.
Na
verdade, a única movimentação legislativa que ocorreu em oito anos de Governo
foi a própria PLC-122 com votação encaminhada a Mesa pelo então PFL mesmo sendo
um projeto de uma Deputada do PT, que foi muito atacada por absoluta ignorância
a respeito de sua redação, e pela instrumentalização da informação. Por
exemplo, um ex deputado federal deu uma declaração no jornal dizendo que essa
lei caso aprovada permitiria que pessoas transassem tivessem relações sexuais
em locais públicos sem poder ser impedidas. Isso por si só já é um disparate
para qualquer pessoa de razoável inteligência ainda mais saindo da boca de um
deputado federal, pois uma pessoa em ato libidinoso em público fere o código
penal e pode ser presa! E tenho certeza que esse deputado sabia disso. Pois
pior seria até se não soubesse!
Eu nunca soube de um caso ou li a
respeito que um indivíduo transasse no meio de uma loja, ou dentro de uma
Igreja, diante das pessoas que estivessem passando. Obviamente, nada de novo,
trata-se de se aproveitar da ignorância alheia, prática muito usada nas
ditaduras, para vantagem política pessoal.
E a situação do movimento gay na America Latina?
O Presidente do Chile enviou, em 2011, uma mensagem ao Congresso para a aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Na Argentina, ele já foi aprovado – a presidente [Cristina Kirschner] foi pessoalmente à televisão defender este projeto, que acabou sendo aprovado pelo Senado.
O que acontece é que agora
o Estado argentino, com a aprovação pelo Senado, reconhece os direitos dos seus
cidadãos de maneira laica – como, aliás, a constituição determina.
Como também estão
acontecendo no Uruguai e no México. No Brasil a questão só foi apreciada no STF
(Supremo Tribunal Federal) e recentemente no STJ (Superior Tribunal de Justiça)
com base nos princípios fundamentais da Constituição, sem leis ordinárias que a
detalhem.
E pensar que como bem
disse a Senadora Marta Suplicy “nós éramos a vanguarda nesta discussão, agora
estamos nos tornando a vanguarda do atraso”, inclusive dentro do próprio
continente. Ou seja, existem inúmeros direitos civis que eu não tenho, como
cidadão brasileiro, pelo não pronunciamento do Legislativo a respeito.
Em que momento você descobriu a sua
homossexualidade?
Não sou um caso muito típico de literatura para isto – e nem gosto de falar, porque minha primeira relação com um homem foi aos 24 anos, quando eu me conscientizei da minha orientação sexual.
E como sua família reagiu?
Sempre tive uma educação bastante liberal, graças a Deus! – inclusive minha mãe [a estilista Glória Pires Rebelo] e até a parte militar da minha família sempre foram muito abertos. É até um pouco engraçado: lá em casa – e isto nas duas vezes em que eu fui casado com homens – os dois foram muito bem aceitos pela muita família, a ponto de sempre tomarem a defesa deles... Se eu brigar com o André, podem ter certeza: vão tomar o partido dele. É uma coisa impressionante: uma vez, fizeram fofoca com minha tia dizendo que eu estava traindo o André – e ela veio tomar satisfação comigo. (risos) Acredite, não é exagero: isto já aconteceu literalmente. Quer dizer, maior aceitação, impossível!
No momento em que você descobriu que você era
homossexual, como isto pesou?
Eu não tive essa experiência. Para mim, isso é um processo muito normal. Eu sou freudiano: desde os oito anos eu fiz análise, e Freud afirma que todos nós somos bissexuais – alguns um pouco mais, outros menos... Obviamente eu já tinha tido atração por algum amigo, mas você nota, quando vai ao banheiro, que mesmo as pessoas heterossexuais ficam olhando para você, não sei a troco de quê! Isto não quer dizer que exista ali uma intenção sexual consciente, mas que ela existe, existe – e a gente não pode negar, porque é uma questão sociológica. Já havia acontecido antes, quando eu era mais jovem e estava fazendo um curso de pós-graduação em design de moda, na Itália. Um dia, eu tinha ido a Roma para ver uma exposição de Valentino e então encontrei um rapaz e saímos por vários dias. Rolou um approach muito lisonjeiro. Eu não via nada de errado – pelo contrário, só uma energia maravilhosa. Sigo muito meu instinto. Resumindo: o que eu não sabia, e aprendi ali, era que dois homens podiam se apaixonar. Mas de uma coisa tenho certeza na vida: viemos aqui para sermos felizes!
E a partir de então você descobriu que isto era possível?
Pois é, veja só! Eu sempre achei que dois homens podiam aprontar todas – e as famosas orgias das décadas de 1970 e 1980 não me deixam mentir, não é mesmo? Havia até pessoas heterossexuais que transavam com várias mulheres e vários homens também – e nem por isto deixavam de ser heterossexuais. Pois estas pessoas estão vivas até hoje e todos nós sabemos quem são. Mas isto não é ser gay: é outra coisa. Mas naquela época eu imaginava isto: o homem pode fazer qualquer putaria – mas paixão por outro homem eu achava difícil... Porque eu achava que os opostos se encaixavam, tinha toda uma teoria energética a respeito. Mas fui pego lindamente de surpresa, na Itália: realmente, foi muito bonito. Talvez pelo fato de que eu estivesse fora de casa, viajando, acabei me permitindo perceber este sentimento – e me permiti também vivê-lo. Pude entender: se a vida colocou isto na minha frente, não deve ter sido à toa. Como foi também o André. Acho que poucas pessoas têm essa chance na vida: é uma benção de Deus você poder encontrar a sua cara-metade. Então eu encontrei a minha cara metade. E eu agradeço a Deus todo dia por isso.
Há quanto tempo você e o André estão juntos?
André Piva e Carlos Tufvesson |
Há 16 anos. Toda noite quando eu vou dormir, eu rezo e agradeço a Deus. André é ateu, não acredita em nada, mas eu sempre digo, toda noite, para ele: “Dorme com Deus”... Mas ele não me diz: “Amém!” ou “Você também!”. Mas apenas: “Obrigado”. (risos) Quer dizer, estamos casados há 16 anos – por isso, antes mesmo de celebrar meu casamento, achava um absurdo eu chamar o André de parceiro, ou namorado. Porque o que é o casamento, por definição? Duas pessoas se unem em matrimônio e dividem uma vida em comum. Eu faço isto há 16 anos – e conheço poucos casamentos – insisto neste poucos – que durem tanto. Então eu posso chamar isto de namoro? Seria mais do que um eufemismo: seria quase falsidade ideológica. (risos)
Você encontrou resistência ou preconceito fora da família?
Houve um caso, sim, de uma pessoa que veio trabalhar na nossa casa. Ela é evangélica e, quando começou, os filhos não queriam permitir, porque aqui era a casa do pecado. Sim, porque era assim que ela via um casal de duas pessoas do mesmo sexo. Depois que os três frequentaram a nossa casa, passaram a achar nossa relação incrível. Mas antes eles precisavam conhecer. Porque o preconceito significa – literalmente – o conceito gerado antes de se conhecer. Porque o mínimo que eles deveriam achar é que iam entrar em casa e me encontrar transando com o André no meio da sala. (risos) Hoje eles sabem que não é nada disso – trata-se de uma relação absolutamente igual às outras.
Você e o André já pensaram em adotar uma criança ou
em alguma coisa assim?
Não. Eu sempre quis ser pai na verdade – e, na verdade, fui criado para isso. Porque, se eu não tiver filhos, a família Tufvesson acaba no Brasil. Mas infelizmente, eu não vou ter. Em primeiro lugar, por causa da minha vida corrida e maluca, sem tempo para nada. Mas também tem uma razão mais profunda: não sei se eu daria um bom pai. Porque, se meu filho chegasse em casa depois das 22 horas, acho que eu iria enlouquecer! (risos) Se ele aprontasse um décimo do que eu aprontei, eu iria surtar mais ainda – teria que viver à base de calmante. Então eu acho que eu seria uma merda de um pai. (risos) Porque hoje em dia é preciso ter muita coragem – e eu não tenho. Acho que é porque eu conheço o perigo lá fora e já aprontei muito na minha vida – muito mesmo!Bem, os tempos eram outros. Mesmo assim, você vê casais homossexuais que adotam crianças. Acho que isto é vocação, como acontece com os casais heterossexuais.
O reconhecimento da união civil entre pessoas do mesmo sexo foi um passo
imprescindível?
Existia uma incoerência constitucional no não-reconhecimento dessa união estável no Brasil. Como o casamento faz parte do Código Civil, e a constituição diz que a lei é igual para todos. Eu, como cidadão brasileiro, estava, antes de maio de 2011, sendo ferido nos meus direitos constitucionais ao não ter esse mesmo direito ao casamento civil. Porque a verdade é essa: não existia interdição na lei.
O caso do Marquinho [fotógrafo Marco Rodrigues] e do Jorginho
[o artista plástico Jorge Guinle]* é uma das histórias
que mais ajudam a entender a necessidade fundamental desta lei. O Jorginho
vivia lá em casa porque ele era muito
amigo da minha mãe e da minha avó. Então, eu sei que, na época, quando Jorginho
estava em plena agonia da Aids, a família dele nem queria saber. Quem segurou
toda a peteca foi o Marquinho, mesmo. Ele não foi apenas um marido: foi um
sócio de Jorginho.
Na verdade, ele era o marchand dele. Então, na verdade, ele
teria direito à metade do que seria a “Jorginho Guinle S.A.”. E, sobre a outra
metade, uma parte como cônjuge. E qual foi a realidade pela qual ele passou?
Ele passou por uma luta imensa foi despejado dezena de vezes do imóvel onde eles moravam. Inclusive o
Marquinho me disse que foi ele quem pagou a entrada do apartamento, com o
dinheiro dele. Mas, naquela época, ninguém imaginava que iria morrer, ninguém
guardava recibo de nada.
Você já enfrentou algum problema legal deste tipo?
Nem precisa procurar muito... Eu estou casado há 16 anos e até maio de 2011 e o André não tinha o direito de entrar em um hospital comigo, caso me acontecesse algo. Bem, se isso tivesse acontecido comigo, eu teria quebrado o hospital inteiro, e iria preso! (risos) Graças a Deus eu tenho plano de saúde e posso ir a um hospital privado. Outra coisa. Tenho uma conta conjunta com o André no banco, onde nós dois aparecíamos como solteiros. Imagine! Eu sempre dizia ao gerente, quando assinava os documentos no banco, que era como se estivesse cometendo uma fraude,
ou praticando uma
falsidade ideológica – uma mentira, enfim: pela definição da lei, eu sou
casado.
Você já teve a experiência de ser sacaneado ou
hostilizado em público?
Nunca. Desde que me assumi gay e passei a ter relações amorosas, sempre fui casado – e emendei um casamento no outro. Nunca fui alvo de preconceitos, mas tenho consciência de que isto é uma situação absolutamente atípica, porque 99,99% dos gays já foram. Agora, também quero dizer o seguinte: beijo o André em qualquer lugar, seja no meio da rua ou em qualquer restaurante – mas eu beijo com total respeito, da mesma maneira que eu não gostaria que um heterossexual enfiasse a mão no peito da mulher do meu lado, em público. Isso, eu iria reclamar! Trata-se da expressão do amor, e eu penso que o amor não pode ferir ninguém. Tanto que minha avozinha, de 85 anos, acha a coisa mais linda o meu casamento com o André: porque ela vê o amor, vê que o neto está sendo bem cuidado por um homem que o ama. Certamente, seria muito diferente se o André fosse um porra-louca e uma má influencia.
Existe diferença entre o homossexual masculino
e o feminino?
O homem é mais sexual por natureza (seja com uma mulher ou com um homem) transa as vezes sem precisar sequer perguntar o nome. Já a mulher é mais introspectiva e menos superficial. A principal diferença é esta – e ela se manifesta até mesmo no casamento heterossexual.
O mais engraçado
nessa luta é que nós, homossexuais, somos a ultima tribo urbana que luta pelo
direito do casamento, de constituir família, enfim, pelo direito ao amor...
Mas um casal de lésbicas é totalmente
diferente de um casal de gays. Aliás, dentro da tribo que nós chamamos LGBT,
existe uma grande diversidade, e uma série de recortes – de atitudes e até de
necessidades. Tanto que o movimento é muito fragmentado por causa disto, e
raramente conseguimos nos unir. Por exemplo: a identidade de gênero das
travestis é feminina. Em regra elas gostam se sentem atraídas por um homem, ou
seja, tecnicamente elas são heterossexuais. É preciso compreender, no fim das
contas, o que define o gênero de uma pessoa: se é a existência de um pênis ou uma vagina, ou se
é a psique, que a Medicina já definiu que é uma questão de cabeça.
A própria educação é diferente desde a infância,
para o menino e a menina...
Claro! Porque o homem aprende desde cedo que não pode ser fraco, nem pode chorar. Isto começou a mudar um pouco com a figura do metrossexual. Eu costumo dizer que o metrossexual foi a grande descoberta para as mulheres heterossexuais terem um homem sem aquele monte de pelos saindo do nariz ou das orelhas. Assim elas aprenderam que vaidade não é sinônimo de sexualidade.
Veja a diferença na
educação: minha mãe queria que minha irmã casasse virgem. Mas pergunta se isso
valia também para mim? Claro que não! Eu tinha que comer todas as meninas,
entendeu?
Por falar nisso: qual é o papel da mulher (quer dizer, da mãe) na
educação das crianças?
Você sabia que a mulher brasileira está entre as mais machistas do mundo? Pois é. Na verdade, é ela quem cria o homem machista. A italiana também – mas lá, pelo menos, o movimento feminista foi muito forte, os direitos civis passaram por um processo de luta muito grande.
A mulher cria o filho machista porque
ela também é. É ela quem transmite estes estereótipos masculinos: macho não
chora, macho dá porrada... Nas décadas de 1960 e 1970, a mulher queimou sutiã e
surgiu uma figura feminina mais forte, que estava ingressando no mercado de
trabalho. Hoje, estamos vivendo num mundo pós-feminista, ainda com muitos
desequilíbrios... A mulher conquistou o direito ao voto e ao divórcio, que são
bandeiras assumidas – a única que falta é a do direito ao aborto... Mas, no
fundo, a culpa por ela transmitir esta educação machista é também em parte dos
homens – que se omitem muito em relação aos filhos.
Já que mencionou as travestis, como um grupo
específico dentro do movimento, como você analisa esta questão?
Olha, é preciso procurar entender o sofrimento da comunidade travesti – ou comunidade T, como nós a chamamos. É uma situação comovente, sem exagero ou pieguice... Porque é muito mais difícil e complicado. Por exemplo, se eu estiver parado, ninguém vai dizer: “Ah! Você é gay”. Mas a travesti está sempre exposta – é um soco na cara da sociedade, na medida em que mantém sempre viva a ideia de que a diversidade precisa ser aceita. Só que a diversidade não é aceita: quanto mais diversa, menos ela é aceita.
Você deve ter lido a história nos
jornais do filho do ex-jogador [Toninho]
Cerezo (a travesti e modelo, Lea T), que vai fazer operação para mudar de sexo.
Quando chegou a hora de decidir, ela disse que a família confessou: “É melhor
que você seja gay”. Ou seja, se não fosse o problema de mudar de sexo, a
situação seria até mais viável – vamos dizer assim. Socialmente, nos dia de
hoje, é mais fácil aceitar um homem que gosta de transar com outro homem. Mas
são duas coisas absolutamente distintas: o sofrimento de uma pessoa que nasce
no corpo errado é uma coisa horrível, uma verdadeira prisão. Existem casos de
mutilação – enfim, é bastante complicado.
Pelo menos, o Rio de Janeiro conta
agora com um projeto excepcional para a comunidade das travestis – e que eu
considero digno de ser levado à ONU. É o Projeto Damas, voltado especificamente
para a travesti, que tem pouca condição de entrar no mercado de trabalho e
muitas vezes corre risco de vida. O Projeto Damas [treinamento para travestis e transexuais para inserção no mercado de
trabalho] tira da rua e capacita para o trabalho. Isso é cidadania!
Como funciona o projeto?
A ideia é dar a travesti condições de se inserir no mercado de trabalho qualificando-a profissionalmente e dando formação escolar. Assim, acreditamos que elas optem por não mais se prostituir.
Ou seja, o Projeto
Damas ensina uma profissão – e, ao mesmo tempo, um departamento da Prefeitura
entra em contato com determinadas empresas para inseri-las num ambiente de
trabalho, para que elas possam aprender trabalhando nas próprias empresas.
Queremos mostrar que
são seres humanos competentes em suas profissões como quaisquer outros;
devidamente treinadas e capacitadas. O Projeto também oferece uma ajuda de
custos durante seis meses – ou seja, a empresa não tem despesa nenhuma. Com
isto, certamente, além de diminuir a prostituição nas ruas iremos, sem sombra
de dúvida, inserir na sociedade uma comunidade que está marginalizada dos seus
direitos civis.
Você acha que as pessoas acabam internalizando o
preconceito e a homofobia?
Sim, e acho importante destacar isso aqui: a questão da homofobia interna. Acredito que seja o mais grave, porque o mundo inteiro pode até ser homofóbico – mas se você não está bem resolvido sexualmente, é sempre pior. Por isso eu defendo que o mais importante é só revelar e assumir abertamente sua sexualidade quando já estiver bem resolvido dentro da pessoa. A homofobia é um fato. Até hoje existe a censura moralista ao beijo gay na mídia. Por que? Porque mostrar um casal gay manifestando seu afeto é mais inquietante ao “status quo”. Nesse caso a promiscuidade ou o burlesco soam mais digeríveis por serem menos realistas.
E a questão da bissexualidade?
Discordo do [ator] Sergio Brito: eu acredito na bissexualidade – e isto ocorre quando você sente atração pelo ritual com os dois sexos, e eu acredito que isto é possível. Você pode se apaixonar por um lado ou pelo outro. Recentemente, encontrei na rua um amigo que me anunciou: “Cara, eu me casei!”. Então eu perguntei: “E quem é o gato?”. E ele: “É uma gata...”. Mas isso não quer dizer que a próxima será uma mulher. Ele não está fazendo isto por pressão da sociedade, porque todo mundo sabe que ele é gay, ou melhor, que ele é bissexual.
*o fotógrafo Marco Rodrigues foi casado com o pintor
Jorge Guinle Filho, com quem comprou um apartamento no Leblon. Com a morte de
Guinle, por Aids, o direito de Marco à
herança foi questionado. Na época, ainda não havia a lei que regularizaria os
direitos civis (incluindo o direito de herança) dos casais homossexuais.
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