Jane
Di Castro – cabeleireira, atriz, cantora, transexual
Desde
garoto, Luiz de Castro percebeu que era uma mulher, aprisionada num corpo
masculino. Mas apanhou muito (literalmente) e precisou enfrentar grandes
batalhas contra a família, colegas de escola e a polícia antes de conquistar o
respeito e o sucesso nos palcos e salões de beleza, como a transexual Jane Di Castro, com carreira
internacional. Bem-humorada e sem meias-palavras, Jane se considera uma heroína
e sente orgulho de ser “uma grande representante das transexuais”.
Como você lidou com a sua homossexualidade desde cedo?
Nasci homossexual, com o nome de Luiz de Castro, numa família evangélica
de Osvaldo Cruz [subúrbio carioca],
onde morei até os 19 anos. Filho de um oficial da Polícia Militar. Dá para
imaginar o ambiente repressor. Tenho cinco irmãos – e todos são heterossexuais. Isto é mais uma prova de que as
pessoas não escolhem ser homossexual: afinal, todos receberam a mesma educação,
e eu fui o único homossexual da família. Ninguém escolhe: já nasce assim. Essa
coisa de dizer que é opção é uma grande mentira.
Jane Di Castro |
Aliás, há muito tempo a
homossexualidade já deixou de ser considerada uma doença. Mas, naquela época
arcaica em que eu nasci (risos), eu
era considerado um anormal. Na década
de 1960, era assim que as pessoas se referiam ao “filho da Dona Áurea e Seu
Lourival”... Também me chamavam de “mariquinha”, “afeminado”, essas coisas. Não
tinha essas palavras chiques de hoje, como “gay”, “transexual” – era muito
agressivo.
Mas é preciso esclarecer: nasci gay e virei travesti – não nasci travesti... Isto, sim, foi uma opção.
Porque eu nasci com uma cabeça transexual.
Não vim ao mundo para passar o dia inteiro de terno e gravata, ou para ter
barba e bigode. Há uma diferença muito grande entre uma travesti, um
transexual, e um gay.
Você pode explicar
melhor isso?
É simples. Nasci transexual – mas nunca tive caso com gay. Em geral,
gays transam, namoram e se casam com gays, ou pelo menos é como a maioria faz.
Mas eu sempre gostei de homem – e, veja bem, de homens que gostam de mulheres.
Porque sempre me senti mulher. Nunca fui ativa: sempre fui passiva, com cabeça
de mulher. Mas, ao mesmo tempo, sempre tive atitudes masculinas, e me chamava
Luiz de Castro. No início, até uma certa idade, isso foi uma enorme confusão na
minha cabeça. Depois é que a coisa foi se definindo. Porque precisa ter coragem
para assumir esse lado feminino.
Quando eu tinha uns 15 ou
16 anos, cheguei a namorar garotas. Uma delas até tentou suicídio por minha
causa... Mas eu namorava para fazer gosto a minha mãe, por causa da pressão e
da repressão familiar. Inclusive, tinha um primo chamado Carlinhos (já
falecido), bem mais velho, que se casou e teve filhos – mas eu sempre soube que
ele era homossexual. Tornei-me fã da Dalva de Oliveira por causa dele: íamos
juntos à Rádio Nacional. Quer dizer: ele levava uma vida dupla, escondida, por
causa da família.
Quando foi que você
decidiu assumir sua personalidade feminina?
Isso foi começando desde cedo. Como eu disse, nunca fui gay, tanto que
acabei me transformando... Eu tinha mania de sentar em colo de titio, de homem
– sempre tive atração por homem, nunca por mulher. Quando era criança, eu me
escondia no banheiro para experimentar as roupas da minha mãe. Eu gostava de
vestir maiô, colocar salto alto. Minha irmã tinha um maiô de espuma Catalina
(aquele que as misses usavam) que era muito bonito e quando me olhava no
espelho, me sentia uma verdadeira miss. Olha que fetiche, aonde nos leva a
nossa imaginação! Aos 11 ou 12 anos, eu enrolava uma toalha de banho na cabeça
para imitar Carmen Miranda. E me escondia no banheiro para passar batom. Quer
dizer: eu sempre quis ser aquilo. Eu me olhava no espelho... e via uma mulher.
Na infância, eu assisti na
TV a uma propaganda da Coccinelle [dançarina transexual francesa de cabaré],
a primeira transexual a se operar e casar na igreja Sacré
Coeur, de Paris. Quando eu já tinha 16 anos, ela veio fazer um show com o [produtor e diretor teatral] Carlos Machado e se hospedou no Copa [Hotel Copacabana Palace]. Pois fui até
lá, para conhecê-la. Quando ela apareceu na piscina com o marido, eu consegui
entrar pude vê-la, bem de perto. Fiquei admirada: “Ai, que maravilha!”. Ela era
o que eu sempre sonhara ser! Queria me transformar não gostava de minha
aparência masculina – mas só comecei mesmo a mudar na década de 1970.
Mas seu primeiro
namoro foi com uma menina?
Não. Quando era pequeno, já namorava os garotinhos fazia aquilo que se
chamava de meia [relação sexual praticada na infância, entre meninos], e era bem
divertido, porque eles também gostavam. Mais tarde, nem todos eles se tornaram
homossexuais... Mas havia aquela curiosidade entre garotos. E como eu sempre me
interessava por eles... Meus relacionamentos com meninas foram apenas em
decorrência das pressões da Igreja e da família. Eu me sentia obrigado a
mostrar para minha mãe.
É claro que uma criança
ainda não está inteiramente formada – mas eu já sabia que não gostava de
mulheres. Meu negócio não era aquele! Só não tinha coragem de assumir que
preferia os homens, e então vivia numa corda bamba. As meninas viviam atrás de
mim, mas o que eu podia fazer? Uma delas era apaixonada por mim, mas eu
abraçava, beijava... e não sentia nada. Com homens, eu me abria mais, deixava
que me beijassem – era mais fogosa... [N.R.:
Jane usa, em geral, os adjetivos no feminino]
Como era esse
relacionamento com os homens?
Eu tinha relacionamento com homens bem mais velhos. Hoje falam muito em
pedofilia, mas dos 13 aos 15 anos eu era muito cantada e namorava homens
quarentões – e casados. Até antes disso: eu devia ter uns 10 anos quando tive
meu primeiro relacionamento com um homem mais velho. Foi um vizinho meu, de uns
19 anos: chamava-se Quincas e era a coisa mais linda do mundo! As garotas
viviam dando em cima dele. (risos)
Eu era muito criança.
Lembro-me de que pulava o muro de uma fábrica de gasolina para me encontrar com
ele. Eu só fazia sexo oral, e ele ficou “viciado”... E eu também gostei. Senti
que meu negócio era aquele – e comecei a praticar mesmo. Procurava homens mais
velhos, porque eu tinha medo dos garotinhos. Quer dizer: por causa das fofocas.
Eu era criança, mas já era esperta (risos).
Já os homens mais velhos pediam que eu não comentasse com ninguém. Um deles,
inclusive, sempre me chamava quando a mulher saía para trabalhar – era um
bonitão, bem mais velho. Tinha um filho da minha idade.
Quando foi que você
saiu de Osvaldo Cruz?
Saí em meados da década de 1960, porque não queria depender da família.
Antes, por volta dos 14 anos, já tinha saído umas vezes, mas voltava sempre.
Aos 19, saí definitivamente, para trabalhar em teatro, no espetáculo Les Girls, no Teatro Dulcina, na
Cinelândia. Tinha direção de Luiz Haroldo e produção musical de João Roberto
Kelly. Foi o primeiro musical do gênero liberado pela censura no Brasil. Antes
disso, não havia show só com
travestis num teatro – só de madrugada, nas boates. Claro que na Praça
Tiradentes havia atrações com Carlos Machado e Walter Pinto [produtores e diretores de teatro de revista].
Ou seja, nos teatros de revista, sempre havia uma travesti como atração. Em
1967 estreei no [Teatro] Rival, e
trabalhei em quatro peças nas décadas de 1960 e 1970. Dali pra frente, não
parei mais. Ao todo, foram 10 shows no Rival – acho que a [travesti] que mais trabalhou ali fui eu.
E antes? Você já
havia trabalhado?
Sim. Aos 14 anos, já podia trabalhar como menor. Fiz teste no Banco da
Bahia e fui trabalhar de boy. A
primeira coisa que me deram foi um texto para datilografar – e fui aprovado.
Naquela época, havia cursos de datilografia e eu era excelente datilógrafo.
Vestia com terno e gravata, como homem. Fiquei lá alguns anos, mas implicavam
porque descobriram que eu era diferente, então saí. Também trabalhei na Eternit
do Brasil e na [loja de roupas masculinas]
Ducal.
Nessa época você
“dava pinta”?
Muito! Não era à toa que eu quase não parava nos empregos (risos). Quer dizer, eu forçava um pouco
– e, de repente, quando, via, estava desmunhecando. (risos) Mas não era uma coisa assim do tipo “uuuiii” ou “aaaaaai”:
nunca fui afetada ou do tipo “atacada”. Aliás, eu era o que sou até hoje: fui
um garoto discreto, calado, que não olhava muito para as pessoas porque tinha
medo de que descobrissem... Porque naquela época ser o que eu era, era quase um
crime: as pessoas batiam, já existia o bullying.
Eu sofria tudo isso, desde criança.
Você não chegou a
estudar?
Eu estudava no Colégio Piedade [
que se tornou a Universidade Gama Filho, hoje falida, fechada], onde fiz o
que seria hoje o ensino fundamental. Mas acabei parando quando entrei para o
cientifico, querendo depois entrar numa faculdade. Parei porque teria que
estudar à noite, já que, durante o dia, os garotos não me davam sossego –
implicando comigo, batendo em mim. Eu tinha que sair pelos fundos do colégio. Muitas
vezes, eu esperava mais de uma hora, até todo mundo ir embora, para eu poder
então pegar o trem discretamente. Eu tinha esse sofrimento, de ser empurrado e
xingado: “Ô, viado! Ô, mulherzinha”. Nunca era uma pessoa só, mas sempre em
grupos. Uma vez fiquei tão revoltada que peguei um pedaço de pau e comecei a
bater em todo mundo – quase aleijei um deles. Então, fui expulsa.
Quando foi que você
decidiu seguir a carreira artística?
Desde criança, eu ia muito à Praça Tiradentes, para olhar as fotos das vedetes
do teatro de revista. Eu tinha essa mania, porque já queria ser artista, vedete
de teatro. Aliás, sempre quis. Fui a primeira e única travesti estrela do
Teatro Carlos Gomes [na Praça Tiradentes],
na Companhia de Silva Filho. E Nem me ocorria ser outra coisa: nasci para ser
artista . Lembro-me de que, uma vez, cheguei à Praça Tiradentes e vi a foto de
uma vedete argentina contratada pelo Walter Pinto para o Teatro Recreio – a
foto estava na porta, ela era a atração! Pensei na hora: “É isso que eu quero
ser!”. Um dia, conheci a Eloína na porta do Teatro Carlos Gomes. Minha amiga até hoje, ela me levou para a
Cinelândia – que era o point [ponto de encontro] das bichinhas pintosas.
Jane Di Castro com a atriz Catherine Deneuve |
Aos
poucos, fui sentindo que tinha talento e podia ser artista. Fui tentando,
insistindo e acabei conseguindo. (risos)
Hoje, alguns comediantes acham que inventaram a stand up comedy – mas artistas como Chico Anísio, Berta Loran e eu
já fazíamos isso na década de 1960. Também sou cantora – e até tentei a
carreira como cantor na Jovem Guarda,
com Carlos Imperial, na TV Continental, mas não deu certo – deu certo depois
que me transformei. Antes de me tornar Jane, participei do MIT (Mercado
Internacional de Talento) no Programa Flávio Cavalcante, e fiquei para a final
junto com Emilio Santiago. O vencedor foi o Tobias, que vive em Paris até hoje.
Também participei como calouro de muitos programas de diversas rádios como a
Mayrink Veiga e a Mauá, como Luiz de Castro (risos)
que também não deu certo.
E quando foi que o
Luiz se transformou em Jane Di Castro?
Na realidade o nome Jeanne, como a [atriz
francesa] Jeanne Moreau, foi escolhido
pelo Luiz Haroldo (que era o diretor do Le Girls) para a minha estréia – nome que, aliás, detesto. Quem me
deu o nome de Jane foi o colunista Roy Sugar, do extinto jornal Última Hora. Ele e toda a imprensa
escreviam meu nome errado. Jane eu também detestava! (risos). E o pior é que passei 18 anos sendo “Jane”: saía nas
páginas da Fatos e Fotos e da Manchete [revistas ilustradas da Editora Bloch] e na mídia em geral, mas ninguém sabia quem eu era. Virou uma tortura, porque, cá para
nós: Jane é a do Tarzan (risos).
Um belo dia, quando fui
estrear Gay Fantasy ,um musical no
Teatro Alaska, com direção de Bibi [Ferreira,
atriz, diretora e empresária teatral], ela implicou com aquele nome puro:
só Jane, mais nada? Quando eu falei meu sobrenome, ela decidiu que eu passaria
a me chamar Jane de Castro – mas então eu resolvi colocar o D maiúsculo e o
“i”, em vez do “e”, como o [pintor]
Di Cavalcanti. Foi dessa época em diante que eu me tornei mais conhecida. Se
tivesse sido Jane Di Castro desde os anos 60, seria hoje muito mais conhecida.
Ou seja, desperdicei 18 anos... Tanto que, nessa época, quando o [jornalista e compositor] Ronaldo Bôscoli
fez uma crônica na Manchete sobre as
antigas e novatas travestis, eu entrei
na lista de novatas, junto com a Roberta Close e a Telma Lipi, imagine!
E como foi a passagem
dos palcos para a área de estética e beleza?
Desde criança, eu já penteava o cabelo de minha mãe e das minhas irmãs.
Ficava olhando como se fazia, nos salões de beleza, e acabei aprendendo. Na
verdade, acho que já nasci com esse talento. Até que, na década de 1960 virei
cabeleireira, de fato. O primeiro salão em que trabalhei foi na rua do Rezende
[no centro do Rio de Janeiro],
frequentado pelas prostitutas. As meninas costumavam ir lá até três vezes ao
dia, acredita? O cliente desmanchava de manhã e elas voltavam para consertar.
Depois fui para Copacabana. Trabalhei num salão da [rua] Rodolfo Dantas e depois no [Hotel] Copacabana Palace. Na década de 1970, trabalhei na [rua] Hilário de Gouveia e depois no
Salão Rio, na [rua] Inhangá, onde
fiquei muitos anos.
Você também passou
uma temporada fora do Brasil, não é verdade?
A partir da década de 1970, passei muitos anos fora do Brasil,
trabalhando em shows. Viajei toda a Europa: só em Luxemburgo, fiquei oito anos
(de 1986 a 1994). Também morei quatro anos em Nova York – mas nunca abandonei o
Brasil ou o meu público. Eu ia e sempre voltava. Nem sei como o pessoal ainda
se lembrava de mim. Até que, em 2001, abri meu próprio salão de beleza. Já não
queria saber de ficar viajando.
Você diria que seu
trabalho artístico teve sempre um aspecto pioneiro e revolucionário?
Sem dúvida. Fui uma precursora. Antigamente, as pessoas iam ao teatro
para poder ver um homem vestido de mulher – porque, nas ruas, as travestis eram
proibidas de circular “a caráter”. Quer dizer, o público entrava por pura curiosidade e
acabava se apaixonando pelo show.
Eram espetáculos de artistas com muito talento – inclusive, porque nós viemos
substituir as vedetes do teatro de revista, que estavam em decadência. Hoje em
dia, você vê uma travesti em cada esquina.
Mas o mais importante é
que eu também ajudei muitos travestis a se assumirem e a se transformarem.
Pessoalmente, sou a única ativista: estou sempre presente em qualquer protesto
a favor do homossexual. Sou uma das pioneiras das Paradas Gays de Copacabana –
que, ninguém se lembra, mas começaram por volta da década de 1980. A primeira
não chegava a ter 50 pessoas... (risos)
Passei com uma tabuleta na mão e, quando olhei para trás, não vinha quase
ninguém. Eu estava pagando o maior mico! Na verdade, todo mundo estava com medo
dos skinheads da Miguel Lemos [rua de Copacabana] que disseram que
iriam nos bater.
Você já lutou pelos
direitos dos gays à cidadania?
Claro. Nós já fizemos muita coisa pela cidadania dos gays. Lutamos desde
as décadas de 1960 e 1970, quando promovemos uma verdadeira revolução.
Derrubamos muitos muros: saíamos vestidos de mulher, muito “abusadas”, e
enfrentávamos a polícia. Era uma forma de reivindicar e enfrentar o
preconceito. Fomos as primeiras a utilizar hormônios. Neste aspecto, nós fomos
uma espécie de cobaias: éramos homens com peitinhos... vestidos de homens.
Hoje em dia, tudo isso que
está acontecendo, é por causa do nosso grupo corajoso daquela época. Lutamos
contra a ditadura, éramos presas, xingávamos os policiais... É bem verdade que,
naquele tempo, eles não eram tão violentos quanto hoje. Íamos em cana e, para
sair, tínhamos que fazer sexo com os policiais, ou então uma faxina na
delegacia. Fazer o quê? Éramos “viados” mesmo – e não tínhamos direito a nada.
Nem de reclamar.
E atualmente, você
ainda é uma ativista?
Sempre! Faço parte do Arco-Íris [movimento fundado em 1993, no Rio
de Janeiro, em defesa da Cidadania GLBT], cujo coordenador executivo é o
Júlio Moreira. Sou bem atuante: participo das reuniões e das paradas. Na
verdade, sou a madrinha do Arco-Íris. Além disso, fui a primeira transexual a
cantar o Hino Nacional no Brasil, convidada por Cláudio Nascimento, da SuperDir
[Superintendência
de Direitos Individuais, Coletivos e Difusos, da Secretaria de Assistência
Social do Rio de Janeiro].
Você nunca pensou em
ser deputada?
Confesso que já me convidaram, mas nunca me entusiasmei. É um processo
que requer muito empenho e muito dinheiro – e falta patrocínio. Falta também um
partido. Pessoalmente, a política não me encanta: eu gosto é de protestar. Sou
ariana: se eu desejasse mesmo e me empenhasse, acho que já teria conseguido me
eleger. Minha plataforma seria em defesa de todos oprimidos. Mas gosto mesmo é
da arte e, em relação ao exercício da cidadania, meu barato é protestar.
O que você acha que
mudou desde a década de 1960?
Quer saber? Naquela época havia certa organização. Depois, veio a
liberdade total. Eu vivi num tempo de muito glamour
e muito amor. Havia preconceito e repressão, mas os homens eram mais carinhosos
– aliás, as pessoas, em geral, tinham mais carinho. Eu tinha casos escondidos, mas era sempre muito
bacana: os homens beijavam e abraçavam, marcavam encontros – tratavam bem. Era
sempre aquela coisa discreta, mas com muito amor. Eu recebia flores e anéis de
presente.
Hoje em dia, já não
consigo ver essas coisas... E não só com as travestis, mas com os seres humanos
em geral... A mulher, por exemplo, conquistou sua liberdade, mas acabou
copiando os hábitos masculinos: os homens estão lavando louça e as mulheres
saindo para trabalhar. Existe até homem que apanha de mulher! Ou seja, o marido
ficou muito abaixo da esposa: acabou-se aquele ritual de cortesia, de abrir a
porta do carro para as damas. Claro que isso ainda existe, mas é muito mais
raro. Porque a mulher quis o poder – hoje, inclusive, temos uma presidente
mulher.
Quando é que, naqueles
tempos, alguém iria imaginar uma coisa dessas? Até deputados e vereadores eram
apenas homens! Aliás, mulher que trabalhasse fora era um escândalo: mulher
tinha que ser dona de casa. Minha mãe trabalhou, durante uma época, por necessidade,
mas meu pai queria que ela ficasse em casa, esperando por ele, toda linda. Eram
realmente outros tempos: meu pai saía com ela fardado, porque não havia tantos
assassinatos de policiais. Hoje não poderia mais. A violência nas ruas também
era mais leve: nunca vi tantos assassinatos como atualmente.
Mas você enfrentou
muita violência e perseguição...
Claro que enfrentei! Na década de 1960, fui presa e torturada várias
vezes por ser pintosa. Perdi até a
conta do número de prisões. Antes disso, na década de 1950, havia o famoso
delegado [Deraldo] Padilha [Comissário de polícia do Rio de Janeiro,
conhecido por seu comportamento truculento e intransigente]. Ele fazia um
teste terrível com as pessoas que abordava: passava uma laranja por dentro das
calças dos homens, para ver se ela saía facilmente pela boca da perna. Se não
passasse, era porque a calça estava muito justa – conclusão: o cara era
homossexual e ia preso! Veja que absurdo... Com a gente, era ainda pior: ele
nem fazia o teste da laranja. Já ia dizendo: “Manda esses viados para a
cadeia”. Apanhei muito dele. Cheguei a reivindicar uma indenização por essas
coisas, durante um congresso. Mas... quem vai me pagar?
Você não acha que a
homofobia e a perseguição aos homossexuais estão muito maiores?
Este tipo de violência sempre existiu – mas é claro que agora piorou
muito. Gays já não são minoria e os homossexuais continuam sendo perseguidos,
mas a violência está generalizada para qualquer sexo. Hoje em dia, ela atinge
também crianças, mulheres, nordestinos... Existe até homem matando a própria
mulher e mães que jogam os filhos no lixo.
Fico muito triste com tudo
isso, mas tenho que admitir: hoje em dia eu, pessoalmente, vivo como uma
rainha. Há muitos anos sou muito bem tratada, prestigiada e homenageada. Desde
a década de 1970, quando me transformei e passei a ser conhecida e reconhecida
como artista, a violência acabou pra mim. Pelo contrário: quando percebiam que
eu era homem, falavam da minha beleza. Até os heterossexuais diziam: “Não sou
muito chegado, mas até que eu comia”.
Então, as coisas
melhoraram para o universo GLBT?
De certa maneira, sim. Antes, nós não
tínhamos direitos, nem espaço para nos defendermos. Hoje, já temos. Mas
melhorou porque nós batalhamos. Por exemplo: a união civil foi sacramentada
pelo Supremo Tribunal Federal. Hoje o parceiro já tem direito à herança de
imóveis, em caso de morte – e não a família, como antigamente. O gay já pode
entrar no plano de saúde do companheiro, como dependente. E quantos outros
países já têm união civil entre homossexuais? Até a Argentina, o país mais
homofóbico onde eu já trabalhei. Temos também uma Secretaria de Direitos
Humanos na Central do Brasil – onde cada sala é dedicada a uma questão:
racismo, gays, transexualismo, travestis, religião... No meu tempo, o meu
endereço era a delegacia, não para reclamar, mas por viver presa. (risos)
Como você vê aqueles
que garantem a cura para o homossexualismo?
Acho tudo isso uma loucura. Já ouvi falar de “ex-ladrão” e “ex-corrupto”
(risos), que até podem se recuperar –
mas “ex-gay” eu não conheço! O pior de tudo isso é que eles veem o assunto como
se fosse uma doença – e gay não tem nenhuma doença! Na minha época, muitos
fingiam estar “curados”, por causa das pressões sociais e da família: até se casavam,
mas depois não aguentavam a barra. Saíam do armário outra vez...
E sua vida amorosa?
Jane Di Castro e Otávio Bonfim, casamento civil depois de 47 anos de união. (Foto: Ana Branco / Agência O Globo) |
Sou casada há 47 anos com o Otávio. O nome dele é Otávio de Souza
Bonfim. Fico à vontade para contar isso porque ele realmente não se importa: já
deu até entrevistas para jornais e a televisão sobre o assunto. Temos uma
afinidade muito grande. Hoje, ele virou uma parte de mim – é um membro da
família. Trata-se de um casamento, mas em que ninguém manda em ninguém. Ele
sempre foi muito liberal: nunca me atrapalhou em nada, nem jamais me impediu de
ir a algum lugar ou participar de qualquer espetáculo. Pelo contrário: Otávio
sempre me deu muita força – sobretudo para a minha transformação. Ele achava
que eu estava muito estranha: usando brincos, mas tendo barba. Incentivou-me a
fazer tratamento – enfim, a me definir de vez. Ele dizia: “Ou você anda de
cabelo curtinho com uma roupa discreta, como homem, ou se transforma em
mulher”. Então resolvi me transformar em mulher – e fui muito mais respeitada.
Como vocês se conheceram?
Conheci o Otavio em 1967, quando estreei o espetáculo Vem Quente que Estou Fervendo, no [Teatro] Rival. Ele apareceu uns 15 dias
depois, para assistir. Na época, eu ainda usava uma peruca loura – não era transformada. No dia seguinte, ele
voltou – e mandou um bilhetinho para mim: “Estou na quarta fila, com a roupa
tal...”. Quando fui cantar, olhei para ele, e então vi quem era. No final, não
saí do teatro vestida de mulher, mas como um garoto – eu tinha 19 ou 20 anos,
era muito criança. Então eu disse para ele: “Lá dentro, você viu uma mulher
loura, não é? Mas agora você está vendo um rapaz de cabelo preto e curto”. Mas
ele me convidou para tomar um café. E estamos juntos até hoje.
Seu marido enfrentou
algum preconceito?
Hoje o Otávio está aposentado. Os pais deixaram de herança uma fazenda
de gado, na Bahia. Mas quando eu o conheci ele trabalhava muito, aqui no Rio. E
enfrentou alguns problemas, sim: ele trabalhava numa empresa de vendas, mas foi
demitido quando descobriram que ele tinha um caso comigo. Durante algum tempo, ele chorou muito, porque não
conseguia outro emprego. Naquela época, existia a tal “carta de apresentação” –
e, quando informavam que ele vivia com um transexual, nunca era aceito.
Isso foi uma tortura para
a minha cabeça, porque ele estava passando por tudo aquilo porque havia me
assumido. Acho que ele não sabia o que ia ter que enfrentar. Ele era até muito
inocente, porque levava os amigos para assistirem ao meu show e depois me apresentava. E eles não aceitavam. Resumindo: Otávio
ficou muitos anos sem trabalho, por morar com uma transexual. Foi a família
dele quem o salvou – ela o apoiava, mas não a mim. No início, eles até foram
contra nossa união . Diziam que era uma vergonha. Ainda mais ele... que não era gay! Porque o Otávio gostava de
mulher. Nenhuma mãe querer ver um filho homem junto com outro homem. Mas a
verdade é que eu gostei de um homem que gostava de mulher. Ele não gosta de
homem, pelo menos eu nunca o vi com outro. (risos)
E o casamento
conseguiu resistir à sua carreira e às suas viagens?
Claro. Sempre que eu viajava, o Otavio ficava me esperando. Até porque
eu tomava o cuidado de só ficar três meses fora: ficava três meses aqui e
voltava a viajar, mais três meses, e assim por diante. Foi assim até durante a
temporada em Luxemburgo, onde fiquei oito anos. Não acredito que tenha havido
fidelidade, durante todo este tempo. Como eu poderia exigir isso, com a vida
que eu levava? Ele ficava aqui e eu rodando pelo mundo, cuidando da minha
carreira. Nem sei como ficamos juntos... aliás, ele teve chance para me
abandonar. Mas sempre acabávamos juntos. Não acredito em fidelidade: ela só
existe na cabeça da gente. Se você quiser uma coisa perfeita, vai viver
eternamente sozinha. Nosso relacionamento sobreviveu porque tínhamos muita
liberdade. Mas eu sabia que estava ali para me divertir – e sempre acabava
voltando para a “matriz”. (risos)
E a relação com sua
família, ao longo de sua vida?
Sofri muito preconceito da família, principalmente por parte da minha
mãe, que era muito severa. Era até mais dura e agressiva do que meu pai. Dizia,
abertamente, que preferia ter um filho bandido, a um “viado”. Isso fazia muito mal à minha cabeça: eu vivia
chorando, e só pensava em me suicidar. Foi assim até eu sair de casa. Por causa
disso, passei muitos anos sem ver minha mãe: só voltei lá quando ela estava em
coma, há uns 10 anos. Fui me despedir dela.
Meus irmãos também morriam
de vergonha. Diziam: “Como é que nós vamos apresentar você para os outros?”.
Para eles, era inimaginável dizer que tinham um irmão... “viado”. Aliás, dois
já morreram, e o que ainda está vivo mora na Barra. Nunca houve afeição ou
afinidade, simplesmente por eu ser assim. Quando fiquei famosa, ele até me via
na TV! (risos) Uma vez, ele quis me
oferecer um almoço, mas eu recusei.
E suas irmãs?
Minhas irmãs são maravilhosas – e eu me relaciono muito bem com as duas!
Uma mora no Recreio, a Iara, a outra, a Ilma, nunca saiu de Osvaldo Cruz.
Jantamos juntas, e elas sempre me ligam no Natal e no réveillon. Somos apenas quatro, agora, porque dois homens morreram.
Quanto ao pessoal de Osvaldo Cruz, sempre que volto lá ainda encontro muitos
homens com quem transei. Agora estão velhos, barrigudos e carecas. Estão
casados, e agora são avôs. Eles brincam comigo: “Você não envelhece, hein? E a
gente assim, com essa cara!”. (risos)
Você acha que teria feito o mesmo sucesso se fosse
“Madame Jane de Castro” (uma mulher), em vez de Jane Di Castro?
Não sei dizer, porque existem muitas mulheres que são atrizes e famosas.
Se eu tivesse nascido mulher, com essa mesma cabeça que tenho, seria uma atriz
famosa. Porque tudo o que eu desejei ser consegui: sou atriz, cantora e vedete,
como sempre quis. Podia também ser uma madame. Aliás, se eu fosse mulher, acho
que ia ser muito fresca. (risos)
Nunca pensou em ter
filhos?
Sinceramente, nunca. Nem toda mulher quer ter filhos – e eu nunca tive
esse lado maternal, apesar de adorar crianças. Quando vejo algum gay adotando
filhos, acho muito bonito – mas ainda acho que seria mais interessante fazer
uma inseminação, conseguir uma barriga de aluguel. Se eu fosse ter um filho,
iria querer que fosse fruto do meu orgasmo. Uma criança que tivesse meu sangue.
Porque o filho puxa muito à família, e quando se adota nunca se sabe nada sobre
o DNA daquela criança.
Fazendo um balanço de
sua trajetória, você se sente realizada e feliz?
De certa forma, sou uma heroína. Enfrentei todas as guerras: com a
família, com vizinho e na escola. Fui perseguida em todos os lugares. Venci e
me tornei artista: já trabalhei em cinema, TV e teatro. E não posso reclamar.
Já contracenei com grandes atores e trabalhei nas melhores casa noturnas do
Brasil e do exterior. Sou uma grande representante da classe – e posso dizer
que elas têm de se orgulhar de ter uma representante como eu. Eu provei que a transexual
tem capacidade para ser o que desejar.
Exemplo disso é que, há cinco anos, sou síndica do meu prédio, um
edifício com 80 apartamentos – e não conheço nenhuma outra transexual que tenha
conseguido isto. E o mais importante é que eu não me ofereci para ter o cargo:
eles é que vieram me pedir. Aliás, viviam sugerindo que eu me candidatasse, mas
eu não aceitava, porque viajava muito. Até que um dia eu aceitei. Afinal, já
que eu sempre administrei a minha vida e o meu salão – por que não administrar
o prédio também? Mais uma vez, fui uma pioneira. E para completar, ainda estou,
há oito anos, à frente do projeto do show
Divinas Divas, que é um grande
sucesso de público e crítica. E foi parido por mim.
Tem mais: recentemente
realizei o maior dos meus sonhos. Graças a política do Rio Sem Homofobia foi
possível a conversão da minha união
estável com meu marido Otávio em casamento. Meu encantamento com o fato não é
somente pela coroação do nosso amor de 47 anos, mas também por estarmos abrindo
uma janela para que outras pessoas
tenham as mesmas oportunidades. Afinal, foi o maior casamento coletivo
promovido pelo programa Estadual Rio Sem Homofobia (em 23 de novembro de 2014).
E dá aos casais homossexuais os mesmos
direitos dos heterossexuais.
Belíssima entrevista.
ResponderExcluirÉ uma história de vida, persistência e exemplo para outros transexuais, principalmente os mais novos.
Sou super fã da artista Jane Di Castro, e a aprecio muito como ser humano e militante.
Um beijão Jane.
Adoro você, te sigo , sou sua fanzoca.
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