CAETANO GUSMÃO, cabeleireiro
As
clientes do talentoso cabeleireiro Caetano
Gusmão dizem que ele tem “mãos de tesoura”, numa referência ao filme Edward Mãos de Tesoura, do americano Tim
Burton. Mas, ao contrário do tímido personagem interpretado por Johnny Depp,
Caetano é muito bem articulado e tem olhos tão afiados quanto as lâminas que
maneja para dar um toque especial a cada penteado. Instalado num dos salões
mais chiques da Zona Sul do Rio de Janeiro, ele fala sem problemas de sua
homossexualidade tranquilamente assumida – e ainda faz humor: “Vamos combinar
que o mundo é gay. Menos o Irã, é claro!”
Em que época da sua vida você se descobriu homossexual?
Posso dizer que foi na faixa de 12 a 15
anos. Mas, na verdade, a gente já nasce com uma certa performance – uma forma de falar e de andar, um tipo de
comportamento. E o olhar, entende? É uma coisa da alma. Porque ninguém se torna
homossexual: já nasce assim. E não adianta fugir.
É a mesma coisa que dizer: “Fulano se
tornou mau-caráter”. O caráter não muda. Aliás, no caso do homossexual, eu
poderia dizer que ocorre o contrário: o caráter até melhora, quando você se
assume e não precisa mais se esconder.
Eu
me lembro que, desde pequeno, sempre saía do banho com uma toalha enrolada no
corpo, como se fosse um vestido. Já era um toque feminino, entende? Só que eu
não tinha consciência, porque era um garoto... Mas minhas duas irmãs percebiam
– e me sacaneavam. Eu era o caçulinha, o “filhinho da mamãe”. Até que, aos 13
anos, eu tive uma relação – uma transa – que começou como aquelas brincadeiras
de médico de toda criança. Foi com um amigo de colégio – e por aí começou. É
aquela história: as brincadeiras de meninos e meninas de todas as épocas
são as mesmas... Mas eu tinha instinto, desejo, tesão... E também tinha atração
por mulheres – inclusive, namorava com uma garota na minha rua. Só que eu
olhava os garotos de outro jeito.
E como você conseguiu lidar com essa realidade?
Foi delicadíssimo. Há 35 anos (eu agora
estou com 51), Salvador era uma cidade com mais preconceitos e tabus do que
hoje – e olha que ainda existem muitos... Imagine que eu morava numa rua
pequena e sem saída, com um muro no fundo. Todo mundo sabia da vida de todo
mundo! Foi uma barra, tentar segurar
esta história. Aliás, nem deu para segurar: todo mundo ficou sabendo. É como
naquela brincadeira de “telefone sem fio”, em que uma história vai sendo
aumentada, de boca em boca. Só que, no meu caso, não tinha graça nenhuma.
Claro
que eu sofri muito com isso. Mas também consegui atingir cedo certa liberdade
de escolha. Com 17 anos, saí de casa e fui para São Paulo, já querendo a
independência. Queria conhecer gente, morar sozinho, para poder ter uma vida
mais livre. Morei três anos em São Paulo. Foi lá que eu me descobri, realmente,
ao ter relacionamentos com homens mais velhos. Eu era novinho, e fazia o maior
sucesso.
Qual foi a reação de seus pais quando descobriram que você era
homossexual?
Com meu pai e minhas irmãs, isso
aconteceu um pouco mais tarde, quando eu
já estava em São Paulo. Tive que
contar, por causa de um acidente de carro que sofri, junto com um namorado, que
morreu no desastre... Sou meio viúvo... (risos)
Resultado: meu pai soube de tudo. Tive que voltar para Salvador, para minha mãe
cuidar de mim. Eu tinha quebrado as duas pernas, mas felizmente voltei a andar.
Meu pai então falou para minha mãe que, se ela me aceitasse, ele iria embora de
casa... E ela ficou comigo. Na verdade, meu pai já queria se separar da minha
mãe e acabou me usando como pretexto. Quanto à minha mãe, claro que ela já
sabia! As mães sempre sabem – acho que tem uma música do Cazuza que diz isso...
Não quer dizer que elas aceitem – mas ela compreendeu, como boa mãe... Nunca me
recriminou, nem me chamou de nenhum nome “daqueles”. Claro que não foi uma
aceitação normal, completa. As mães sempre sonham em ver o filho com uma
família, casado e com filhos.
E como foi sua relação com a família?
Sou de uma família simples, do interior
da Bahia. Minha mãe Helosina, mais conhecida como Helô, sempre foi tudo pra
mim. Nota 100! Já meu pai, que tinha e tem uma pequena fazenda de algodão, e
hoje está com 84 anos, é nota 50. Mora em Bom Jesus da Lapa, está casado de
novo, e com quatro filhos. Falo com ele por telefone. Tenho duas irmãs: uma é casada,
virou dona de casa em Salvador; e a outra é chefe de cozinha, tem dois
restaurantes em Bruxelas, na Bélgica. Elas me aceitam, mas só agora... Vamos
ser francos: agora, que estou independente e não preciso de guarida, ficou mais
fácil gostar de mim, não é mesmo? Pelo contrário: até criei um “filho”, que era
da minha irmã do meio. Ela não tinha condições de criar. Hoje ele é advogado,
está casado e muito bem, graças a Deus.
Em suma: você nunca tentou esconder a homossexualidade...
Nunca. Até porque não adiantaria: as
pessoas sempre notam, pelo jeito e pelos trejeitos, por mais discretos que
sejam. Tem sempre aquele jeito da mão, a desmunhecada.
Hoje em dia nem tanto, porque muitos gays até não dão pinta nenhuma. Você cruza
na rua com certos homens musculosos e não diz que eles são... Mas, naquela
época, só existia um tipo de gay: aquele mais afeminado, que hoje ainda existe,
mas de uma forma bem mais digna. Tudo isso já é uma vitória. Você pode ser
cabeleireiro, mas não precisa fazer aquele estereótipo afeminadíssimo – o
chamado viadinho... Não é por aí.
Homossexual não precisa levantar bandeira, nem trazer escrito na camiseta: “Eu
sou gay”. Para quê? Não precisa disso.
Hoje, ser gay não precisa ser uma mancha de petróleo no mar. (risos) Qualquer um pode levar a vida,
independente e ser, por exemplo, cabeleireiro ou advogado. Porque existem
homossexuais cabeleireiros, homossexuais advogados ou médicos, e por aí vai.
Mas num detalhe não tem jeito: dá para identificar o homossexual pelo olhar,
sabia? Existem alguns que não enganam. Podem até estar casados com a mulher que
for. Você olha e – pimba!
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Caetano Gusmão |
Quanto tempo se passou entre você se assumir como homossexual e começar
a praticar, até finalmente um dia dizer: “Eu sou e estou feliz”?
Tudo isso foi acontecendo muito
naturalmente. Pensando no meu passado, percebo que tudo veio vindo de forma
gradual, sem sobressaltos. Porque a vida vai lhe mostrando e você passa a
gostar de coisas mais belas – enfim, desenvolve um outro olhar. Para uma flor, uma vitrine, um
quadro, essas coisas... É uma questão de sensibilidade. Mas isso não quer dizer
que um homem não pode ser sensível também e não ser gay. Qualquer pessoa pode
entrar num museu e amar um quadro deslumbrante. Assim como existe gente que não
gosta de arte, nem de nada. Isto não é só coisa de gay. Muitos marchands e muitos organizadores de
exposições não são gays. Mas muito são? Claro que sim! Vamos combinar que o
mundo é gay. Menos o Irã, é claro! (risos)
Você consegue se ver como heterosexual?
Sou completamente
gay. Não me vejo como uma pessoa diferente. Mas acredito que, se eu fosse
macho, heterossexual, talvez fosse um excelente cabeleireiro também – por que
não? Eu sempre digo e repito: minha profissão não tem nada a ver com a condição
sexual. É uma questão de vocação e de ter uma sensibilidade maior. Já tive a
fase de desmunhecar, mas agora posso declarar: sou um homem que gosta de
transar com outro homem. Não sinto nenhuma necessidade de me transformar em
mulher. Aliás, só fiz isto uma vez, e foi péssimo...
Como foi isso?
Eu trabalhava na Rede Globo, como
assistente do cabeleireiro Silvinho, logo que cheguei ao Rio de Janeiro. Um dia
resolvi sair na Banda de Ipanema e, pela primeira vez, vesti uma roupa de
mulher. E acabei me sentindo muito estranho, pois percebi que não queria aquilo
para mim. Mais tarde, quando voltei para casa e tirei a roupa e o salto alto,
tive uma febre horrorosa, daquelas que dão calafrios. Acho que alguma
“entidade” não queria que a mulher saísse de mim. Mas eu não queria aquele
personagem. Com o tempo, eu fui mudando: fui lapidando, prestando mais atenção
aos meus gestos... Não que eu deva satisfação à sociedade – sou independente,
pago minhas contas, meus impostos. Mas é que eu me sinto melhor assim. Posso
sair na rua sem medo, embora hoje em dia ainda exista muito preconceito. Acho
que vai existir a vida inteira.
E quando foi que começou sua carreira de cabeleireiro?
Entrar nessa profissão foi uma
alternativa para mim. Primeiro, porque eu só estudei até o ginásio, o que hoje
equivale a completar o ensino fundamental. Então, quando me recuperei do
acidente e voltei a andar, já em Salvador, um amigo da minha mãe – que era gay,
e a gente já sabia – perguntou-me se eu não queria trabalhar no salão de um
amigo dele. Por isso, posso dizer que o fato de ser homossexual assumido nunca
me fechou as portas profissionais... Pelo contrário: eu estava sem fazer nada e
no salão acabei descobrindo este dom que Deus me deu. Cortar cabelos, preparar
um belo penteado, é parecido com pintar um quadro – só que trabalhando com as
mãos e a tesoura. Então, acredito que este meu dom de cabeleireiro já veio da
minha mãe, que era uma costureira famosíssima, em Salvador, lidando com as
tesouras. Quer dizer: ou eu ia ser estilista ou cabeleireiro. Mas eu já nasci
com este dom. Sou autodidata. E assim eu comecei.
Mas Salvador se tornou um horizonte muito estreito para você...
Exatamente. Então eu tomei a decisão de
me mudar para o Rio de Janeiro. Comecei morando numa vaga na rua Voluntários da
Pátria [em Botafogo,Rio de Janeiro].
Depois, eu e um amigo meu alugamos vaga em Copacabana, perto da rua Ayres
Saldanha. Vaga, mesmo: cama beliche. O quarto era tão estreito que, para um
ficar em pé e trocar de roupa, o outro precisava se deitar. O banheiro era do
lado de fora – era horrível. Quando eu comecei a melhorar de vida, trouxe minha
mãe para morar comigo, numa quitinete perto dali, na Ayres Saldanha. Ela veio
para cuidar de mim, porque eu estava com uma tosse muito forte, saindo muito à
noite, sem cuidar da alimentação. Pedi ajuda. Resultado: mamãe veio para passar
uns 20 dias e acabou ficando mais de 20 anos.
Quando
ela chegou eu já estava morando com dois amigos. Todos gays: um deles tinha
vindo comigo de Salvador e o outro era o namorado, que ele conheceu aqui. Ela
ficou com a gente, e logo se tornou amiga da travesti que morava na cobertura e
era dona praticamente do prédio inteiro. Ficaram amigas intimas e ela já
começou a costurar para a bicha (risos). Mamãe alugou um apartamento para
mim e outro para ela. A esta altura eu já estava na TV Globo, ganhando melhor,
as coisas foram mudando. Claro que teve aquela essa coisa, o deslumbramento da
profissão: trabalhar na Globo!
Como você se sentiu, trabalhando lá?
Trabalhei durante três anos, no Teatro
Fênix. Foi nos anos 80. Chacretes, Balança
mas não Cai [programa de humor]
com o Lucio Mauro, e também na linha de shows
com Sandra Bréa, Zezé Motta – enfim! O Silvinho me dava espaço: com o talento
que ele tinha, me dava muita liberdade. Era uma figuraça, participava do júri do Chacrinha, e tudo. Enfim, fiz
programas maravilhosos, trabalhei com Denis Carvalho, com Beth Faria... Ele me
dava espaço, me deixava em cena, mesmo.
Por que ‘Paulo Roberto’ virou ‘Caetano’?
Foi quando eu cheguei e fui trabalhar
com o Silvinho. Logo na primeira entrevista, quando ele perguntou qual era o
meu nome. E eu: “Meu nome é Paulo”. Ele disse, então: “Vai virar Paulinho”. Mas
logo ele viu que ia dar confusão: Paulinho com Silvinho... Então ele me olhou,
de cima embaixo. Eu era magrinho, com cabelinho encaracolado, baiano... E ele:
“Você parece o Caetano [Veloso]. Vai
ficar Caetano”. E foi assim que ele me batizou. Desde então, meu nome é Caetano
Gusmão. Mas na certidão continua sendo Paulo Roberto Teixeira Gusmão. Não
mudei, porque dá muito trabalho...
E aquela história de virar empresário e abrir um salão?
Foi uma história muito maluca, porque
as pessoas achavam que eu era dono, sem nunca ter sido. Todo mundo pensa que eu
fali, essas coisas... Mas aquele salão
não era meu. Aconteceu quando eu trabalhava no Douce Beauté e a tal dona
vivia atrás de mim – aliás, desde que eu era assistente do Jambert, na Avenida
San Martin [no Leblon], eu já fazia o
cabelo dela. Só que ela já tinha visto que eu tinha talento. Resultado: ela foi
me encontrar no Douce Beauté, e nessa época ela já tinha um salão, e tal. Quer
dizer, eu não tinha nada no meu nome – mas estava deslumbrado. Foi quando rolou a droga na minha vida. Maconha e
cocaína. E eu entrei num ciclone. Foi terrível.
Você provou, gostou e se viciou?
Pois é: eu me deslumbrei com dinheiro.
Tudo ficou mais “fácil”: queria comprar isto, comprar aquilo. Não demorou,
alguém já me apresentou um baseado,
uma carreira. Era um momento muito
bom, profissionalmente, porque o salão foi um sucesso. Mas, para a minha vida,
para a minha saúde, não foi nada legal. Porque eu não sabia o que era a cocaína
– e acabei cheirando por um bom tempo! E
meu rendimento caiu direto: eu trabalhava pessimamente! Ou seja, Deus tinha me
dado um dom que eu estava jogando fora. Porque a cocaína é destrutiva, corrói o
cérebro. E não tem coisa pior do que o “Day
After”.
No
começo é tudo maravilhoso. Afinal, a droga dá um bem-estar, algo na linha: “Eu
posso tudo!”. Até que um dia... você descobre que entrou no vermelho, e não tem
dinheiro para comer. Você fica magro e feio – como eu fiquei. Enquanto você
está neste redemoinho, sempre aparecem os “amigos”, os assessores que ficam em
volta porque você tem o melhor uísque, e um monte de drogas. A casa estava
sempre cheia... Vá ver agora, se minha casa anda cheia de “amigos”, quando já não tem nem bebida alcoólica, nada
disso?...
Como você conseguiu sair dessa loucura?
Sair de uma situação assim é sempre
difícil. Felizmente, eu não precisei me internar, nem nada. A ficha caiu quando
meu mundo veio caindo junto: minha mãe doente, a clientela sumindo... Tive
então que optar: era a minha carreira ou as “carreiras”... Deu aquele clic!
Fiz terapia, durante uns dois anos. Na época, eu morava na Rodolfo Dantas, em
um apartamento enorme, mas que não era meu. Mas a gente morava ali, porque tudo
estava indo bem – até que começaram a acontecer as coisas, e eu vi que estava
numa furada. Tive que acordar. Ou seja, caí na real quando a minha mãe morreu,
e eu estava péssimo. Venci a guerra contra as drogas na base da força de
vontade. Eu estava perdendo tudo – inclusive a dignidade. Foi duro: a
abstinência foi demorada, com várias recaídas, até eu finalmente acordar e ver
que estava fodido. Sem falar que a
cocaína te deixa promíscuo. Dá o maior tesão, apesar de deixar o homem brocha.
Ninguém cheira e fica de pau duro. Não há boquete
que levante! (risos)
Quando foi que sua mãe morreu?
Foi há cerca de uns 14 anos. Minha irmã
mais velha veio da Bélgica para o enterro. Ela já não via nossa mãe há uns 20
anos, e quando chegou ela já estava enterrada... “Quem paga a conta?”, ela
perguntou. Então eu disse: “Olha, você é poderosa,
mas já está tudo pago”. E então eu viajei com ela. Vendi meu carro, fui para a
Bélgica, fechei o apartamento, paguei umas contas e fiquei oito meses morando
na casa da minha irmã, em Bruxelas. Sofrendo muito, é claro, porque irmã mais
velha é foda. Graças a Deus eu tinha
algum dinheiro guardado. Hoje em dia estou com o maior tesão, na minha
profissão e na vida – e não vou me prejudicar com drogas. Como eu disse: era a
minha carreira ou as carreiras.
E você optou pela carreira profissional...
Claro! Estou limpo há 12 anos. Aliás,
conseguir chegar à minha situação atual, de trabalhar com a Pimenta [N. R.: apelido de Ivanir Werneck, proprietária do
Salão Care], foi a maior prova
de que eu estava bem. Porque, se eu não tivesse valor, se não fosse importante,
ela não iria me contratar, nem me dar uma força
financeira para eu trocar de salão. [N.
R.: ele se refere ao dinheiro pago pelo “passe profissional”]. Não foi nada
na faixa dos milhões, como os dos jogadores. Mas, para quem está duro, qualquer dinheiro que entra é uma beleza.
Como começou esta parceria com a Pimenta?
A Pimenta
me contou que já me “filmava” desde o Fórum – porque ela tentava e não
conseguia marcar hora comigo... Quando ela me procurou, eu já estava no Fashion
Clinic, mas ainda não estava numa situação bacana. Ela me chamou para jantar
umas seis vezes e acabamos tendo uma boa conversa no dia do meu aniversário, 12
de julho, três anos atrás. Pedi uma grana para ela. Admito: fui puto mesmo, e vendi o meu talento! Mas
também é a única coisa que eu tenho para vender... Para onde eu vou, levo
minhas clientes, mas sempre acabo perdendo algumas, não é?
Agora
que eu estou mais sólido. Também corto cabelo de homem, e até já tenho uma
clientela masculina – embora os homens não gostem de pagar nosso preço. Um
corte de cabelo normal comigo hoje é R$ 250,00 – só para cortar, a gorjeta é
opcional. Vou contar um segredo: tenho uma porcentagem (risos). Mas a maioria da clientela ainda é feminina: quando quer um
profissional bom, a mulher paga, com mais facilidade do que o homem.
Antes de trabalhar no Salão Care, parece que você ainda estava num
momento profissional difícil...
Antes eu estava naquele meu que não era
meu... Eram duas salas, o salão já estava montado. Quando comecei a ganhar
dinheiro, comprei uma sala dela, e ficou assim: uma sala era minha, a outra era
dela. O problema é que essa mulher
começou a sentir tesão em mim – e juntos nós acabamos fazendo algumas...
“loucuras”. Ela era casada, imagine, e nós íamos, assim de repente, passar uma
noite em São Paulo, outra em Nova York... Uma vez, em Nova York, ela começou a
querer dormir comigo! Dormimos, e não aconteceu nada.
Um
dia, lá em casa, ela se jogou em cima de mim. Resumo da ópera: como eu não
correspondia aos desejos dela, resolveu me sacanear. Para você ter uma ideia:
ela me convidou para morar num apartamento dela na Lagoa, e lá fomos eu, minha
mãe e meu filho (que eu criei, e hoje está com 26 anos). Pois bem, eu ainda não
tinha baixado a mudança, as caixas e móveis ainda estavam entrando, quando o
telefone tocou. Era ela: “Eu quero que você saia do meu apartamento!”. O
próprio responsável pela mudança ficou boquiaberto: nunca tinha visto uma coisa
daquelas...
Pois
bem. Ela foi para São Paulo, eu continuei trabalhando e pagando o aluguel da
outra sala, mesmo com toda a história do apartamento. Mas então ela vendeu a
sala sem me avisar. Um belo dia, eu estava trabalhando e entrou um sujeito
dizendo: “O senhor é Paulo Roberto Teixeira Gusmão? Esta sala em que está
trabalhando é minha”. Então desmoronou tudo! Acabei vendendo a minha sala,
porque não ia ficar com um salão micro.
Mas você conseguiu dar a volta por cima...
Custei um pouco, mas consegui reverter
a tragédia... Dali, fui trabalhar num salão em Copacabana, na Rua Barão de
Ipanema, onde fiquei durante algum tempo. Mas tudo ainda estava muito confuso,
pois eu continuava no vício... Depois, quando fui para o Leblon, aí as coisas
foram clareando. Era um salão no Hotel Marina, e o proprietário me deu um carro
para eu ir trabalhar com ele. Foi esse carro que eu vendi mais tarde, para ir
para a Europa, morar com minha irmã...
Fazendo um balanço agora, você diria que a homossexualidade levou você a
ser cabeleireiro?
Eu acho que foi uma opção, um talento
que eu descobri – algo que eu nem sabia que tinha. Porque é uma profissão
delicada, artística, que mexe com a emoção. Acontece a mesma coisa com atores –
por isso existem tantos atores homossexuais, embora nem todos se assumam (risos). Não tem erro, essa coisa da
delicadeza, do manuseio, da arte da mão, da perfeição: o cabeleireiro, a área
de moda, o bailarino, o enfermeiro, o ator...
Claro
que também existem atores heteros –
como existem cabeleireiros que não são gays. Pena que tenha ficado este estigma
em cima da profissão... Acho que a própria mídia faz do cabeleireiro a “pintosa”. Mas, no fundo, não tem tanto a
ver assim. Porque hoje temos até excelentes cirurgiões plásticos que são
homossexuais. Aliás, eu imagino que deva ter homossexual na plataforma de
petróleo: já pensou naquele bando de homens no meio do mar?... (risos)
Existe alguma diferença entre o homossexual masculino e o homossexual
feminino?
Existe, sim. Elas são muito mais fechadas, convivem e se relacionam
principalmente entre si. Na verdade eu tenho pouquíssimas amigas gays: é muito
difícil entrar naquele mundinho fechado. Por exemplo: vocês conseguiram chegar
a alguma mulher que quisesse dar o depoimento para este livro? Pois é... Elas
se fecham muito. Mesmo assim, conheço um casal gay feminino e tenho muitas
clientes casadas com mulheres. Por isso posso dizer: elas são muito mais fiéis
entre elas, na relação. Este é o meu olhar, o meu ponto de vista: elas são mais
fiéis, mas também muito mais possessivas.
Por falar nisso: entre as homossexuais femininas, existe aquela que faça
o papel do “homem do casal”?
Com certeza. Uma vai mais à luta,
enquanto a outra é mais passiva. É igual aos homossexuais masculinos: existem
aqueles que fazem o estilo São Sebastião – quer que você faça tudo nele,
inteiramente passivo, na cama. Aliás, existem homens que também são assim: quer
que a mulher trabalhe, e, se pudessem ficavam lendo o jornal (risos). É igual a mulher que gosta que o
homem faça tudo, e que ela fique passiva. Ao mesmo tempo, existe a mulher
ativa, no sentido de tomar conta da situação. Outras até ficam lixando a unha,
como se dissessem: “Faz aí, meu amor!”.
Eu
prefiro ser ativo. Eu não gosto daquele estereótipo do homem machão. Tenho
alguns amigos que adoram o tipo machão, mas eu não: na hora do rala-e-rola,
vale tudo. Eu acho que o homossexual masculino é mais puto, quer dizer: ele é
mais homem, e até por isso é mais infiel, mais galinha. São raros os que são
fiéis – apesar de existirem casais homossexuais que estão juntos há anos e que
são fidelíssimos.
Existe muita mulher gay que é casada... com homem?
Isto acontece muito no meu trabalho. Em
geral, todas são ricas e casadas, e uma é namorada da outra. Todo mundo sabe,
mas ninguém dá um pio... (risos) A
maioria é casada, mas o casamento está uma merda, e ela avisa que vai ao
cabeleireiro, mas só volta às dez ou 11 da noite – quer dizer, passa as horas
com a amiga. Existe também o estereótipo
daquela mulher que é sapatão, aquela
tipo bota, a machona. Mas hoje em dia a maioria das mulheres está mais feminina:
você olha e não diz que ela adora outra mulher.
Tenho
uma cliente que era casada há 16 anos com um cara, e me confessou há um mês:
separou-se do marido e está namorando uma amiga de infância. Quando se
reencontraram, ela péssima, porque o marido tomou tudo que havia dado a ela –
os quadros, a coleção de jarros, todas aquelas coisas caras... Só deixou com
ela as jóias e um apartamento (aliás, deslumbrante). Ou seja, a amiga a
encontrou num momento frágil.
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De cocar: Caetano Gusmão e Louise Sabóia |
E nos casamentos heterossexuais? Quem trai mais, hoje em dia: o homem ou
a mulher?
Hoje a mulher é um perigo, mas acredito
que ainda existe uma preponderância masculina. Assim como na união entre dois
homens a traição continua. Isso, aliás, é um negócio bem masculino. No começo,
tudo são flores, como em qualquer relação. “Eu te amo, jamais vou te trair”.
Mas o homossexual é viril, ele se joga mesmo, vai para uma boate, etc. O outro
viaja para a Europa e ele fica sozinho... Já viu, hein? Tem cabeça de homem:
vai à caça.
Acho
que hoje a mulher heterossexual está mais liberal, enquanto a mulher gay mais
fechada. Em compensação, as heterossexuais são mais frias. Entre as mulheres
homossexuais, há um fenômeno engraçado, de uma transar com a outra, num grupo
fechado: Maria transou com Tônia que transou com a Josefa, que transou com
Silvia – como naquele poema do Drummond [N.
R.: refere-se ao poema Quadrilha, de
Carlos Drummond de Andrade].
Você acredita em bissexualidade?
Com certeza! Dizem que o [ator] Sérgio Brito, por exemplo, não
acreditava: achava que isso serve apenas para disfarçar a homossexualidade. Mas
é claro que existem pessoas com um lado mais aguçado do que outras. Eu já tive
uma namorada, aos 30 anos. Não fui com tanta “sede ao pote” – mas gostava,
fazia tudo direitinho, até ganhei nota alta. Sim, porque você tem que ir com vontade:
tem que comer a fruta e chupar o caroço (risos).
Já ouvi falar de muitos maridos que são
homossexuais. Eu até acredito que o homossexual pode ser um ótimo marido.
Porque, nele, o lado feminino fica mais aflorado. E, além disso, ele deixa a
mulher mais livre e solta, já que tem uma vida paralela. E no fim dá tudo
certo.
Você já sofreu alguma discriminação que machucou, ou deixou magoado?
Não que eu me lembre.
Porque, quando a gente tem um nome, sendo um profissional de talento
reconhecido, existe um pouco mais de respeito. Pode até ser que, quando eu viro
as costas, muitos digam: “Olha lá a bicha,
olha lá o viado”, essas formas chulas
que as pessoas usam para apontar o homossexual. Mas isso é uma situação que eu
não quero passar na rua.
Você beijaria seu namorado em público?
Se rolasse uma coisa assim, se eu
tivesse meio colocado? (risos) Bem,
sinceramente, isto não é uma coisa minha, que eu faça publicamente. As pessoas
ainda se sentem agredidas vendo dois homens se beijando na boca. Veja o caso da
última novela de Gilberto Braga [N. R.:
Insensato Coração, que terminou em agosto de 2011]. Havia uns seis gays na
história, mas não rolou um beijo. O próprio autor comentou, na época, desde a
estréia: “Não vai ter beijo, o povo não está preparado para isto.” Por isso é
que nunca teve. Podem até anunciar, mas
não tem.
Ney Matogrosso lamentou assim, certa vez: “Por que não gostam de mim, se
eu não fiz nada de mal para ninguém? Eu trato as pessoas com muito carinho, eu
canto para elas...” Por que a sociedade brasileira tem tanto medo do
homossexual?
Esta colocação do Ney é divina! Faço
minhas estas palavras dele. É o meu caso
também: eu embelezo as pessoas, inclusive muitos homens. Tenho clientes homens
que adoram meu trabalho, gostam de mim e me cumprimentam na rua. Porque na
minha profissão acontece muito disso: clientes que falam com você dentro do
salão, mas não na rua, ou num restaurante. Existe muito de “cultural”, nisso:
acham que cabeleireiro não tem cultura, e entrou na profissão porque não
estudou. Mas eles não lembram que é preciso talento.
Infelizmente,
hoje em dia a profissão se prostituiu: qualquer um quer ser cabeleireiro porque
acha que é rentável. É sim, mas para quem tem talento. Não adianta fazer um
curso aqui ou ali e se tornar cabeleireiro. Porque um pintor já nasce pintor.
Então o cara vê o que ele fez e vendeu por milhões, vai entrar num curso,
achando que também vai faturar alto? Imagine!
Você acha que no Brasil existe mais homofobia do que no exterior? Ou
isso é um fenômeno mundial?
Acredito que ocorra no mundo inteiro.
De repente, São Francisco (Estados Unidos) pode ter mais liberdade, mas não é
uma cidade só de homossexuais. Nem Nova York, onde o prefeito é homossexual.
Existem países com mais liberdade, onde se pode andar de mãos dadas, como hoje
em dia está havendo no Brasil. Mas hoje as pessoas ainda recriminam se veem,
por exemplo, um casal de mulheres na fila, de mãos dadas e trocando carinhos.
A
homofobia sempre vai existir, por mais que se façam campanhas. Os preconceitos
continuam. Pode ser aqui, como pode ser na Índia. Já imaginou ser um
homossexual no Cairo, Egito, onde está havendo toda essa revolução? E existe
também a homofobia interna, ou seja, do próprio homossexual. Como o negro, com
ele mesmo. A homofobia, não deveria existir, mas existe. Isto é uma realidade!
Por que matam tantos homossexuais?
Porque existem gangues que odeiam
homossexuais. Eles têm medo da própria sexualidade, são bichas enrustidas.
Partem para agredir, porque o outro é, assumidamente, aquilo que eles não
conseguem ser. E este não é o único risco. Antigamente, por exemplo, havia
muito “Boa Noite, Cinderela” [N.R.:
procedimento de dopar o homossexual para invadir sua casa e roubar]. Hoje
em dia já não está tendo tanto. Felizmente, as pessoas estão tendo mais cuidado
ao levar um estranho para dentro de casa.
Eu
mesmo estou mais atento. Outro dia, eu estava saindo do cinema e um sujeito me
parou no meio da rua. Passei por ele, ele me olhou, e eu segui em frente – mas
ele insistiu e encostou em mim: “Você é daqui? Mora por aqui?”. Eu confirmei, e
ele: “Não quer fazer um amor gostoso?”. Eu olhei para ele e fui taxativo:
“Não”. Só assim ele atravessou a rua e foi embora. Tinha a maior pinta de ladrão, porque pelos olhos você
conhece.
Já tinha acontecido antes com você?
Sim, já levei o perigo para dentro de
casa. E quase me ferrei: acordei dois dias depois, vítima de um “Boa Noite,
Cinderela”, sem relógio e sem nada. Poderia ter morrido. A esta altura, são
raros os homossexuais que não foram vítimas. Isto era um vacilo – que eu mesmo
também cometi. Na verdade, existe um verdadeiro mercado de sexo, e existe muita
gente que contrata porque é prático. Há estes meninos que fazem michê de rua, mas existem também
agências de mulheres e agências de homens. Tudo pelo delivery, com um simples telefonema (risos). Se você entrar na internet, vai encontrar tanto agências
masculinas quanto femininas, e para os dois sexos... São sites de prostituição,
com fotos e espaço para você agendar horários, preços... Se é seguro?
Sinceramente, não sei. Porque eu nunca pedi pelo computador.
E como você vê hoje em dia a questão da Aids?
Este é um assunto delicado porque foi
uma coisa devastadora, pelo menos no início. Felizmente, hoje em dia as pessoas
sobrevivem muito bem com isto. Mas o perigo ainda existe. Uma médica querida,
infectologista, que é minha cliente, andou me contando: hoje em dia, os casos
mais comuns de Aids ocorrem entre homossexuais jovens, na faixa dos 18 aos 20
anos, que não se cuidam. Pior: são aqueles que acham que, se pegar, já tem o
coquetel, e tudo bem. Só que não é bem assim.
Você participa de algum tipo de combate à discriminação dos
homossexuais, em termos de fortalecer a cidadania?
Eu não sou militante. Acho que adoraria
ser. Mas nem acho tão necessário participar, porque já existe tanta gente
fazendo isso, e você precisa se engajar como numa causa em que vai ter que
brigar muito por ela. Tal como faz o Cláudio Nascimento[N. R.: coordenador executivo da Parada do Orgulho GLBT do Rio de
Janeiro - a primeira do Brasil - de 1995 até novembro de 2009], que agora é
da Prefeitura.
Mas,
no fim das contas, eu acabo fazendo uma espécie de militância, porque sou
contra milhões de coisas – embora não saia na rua ostentando nenhuma bandeira.
Vou à Parada Gay – mas a verdade é que ali existe muita coisa errada. Quer
saber? Acabou virando uma grande festa rave.
Claro que todo mundo adora participar: o prefeito, o governador... Eles sabem
que os homossexuais são uma fatia enorme de votos, por isso há tantos políticos
presentes, querendo tirar proveito.
A Secretaria da Diversidade Sexual, através da Coordenadoria do Carlos
Tuvfesson , está começando a lutar pela questão da união homossexual. Como você
vê tudo isso?
Na verdade, a maioria dos homossexuais
não quer casar, no sentido tradicional e religioso do termo – quer apenas
legalizar a situação entre
eles. Não precisa casar naquele estilo,
com um de fraque e o outro de noiva. Claro que não é isto! A questão é garantir
os direitos do parceiro, em caso da morte de um deles. Lembram do caso do [artista plástico Jorge] Guinle e do
Marco [Rodrigues, fotógrafo] *? Aquilo foi uma
coisa horrorosa! A iniciativa do Carlos Tuvfesson na Prefeitura é bárbara!
Passou a dar uma segurança para muita
gente. Ele é muito inteligente – não é à toa que é um grande estilista, e já se
revelou um excelente secretário. Trouxe à tona questões como a homofobia, o
negócio da papelada... Muito legal!
E como anda sua vida amorosa, atualmente?
Estou à procura de um grande amor, até
hoje. Na verdade, tive poucos grandes amores – porque amor, mesmo, é difícil de
acontecer. Existem as paixões, mas é uma coisa diferente. Hoje em dia, por
exemplo, estou livre, mas ando muito travado. Na verdade, estou mais focado na
minha carreira e na minha vida – raramente vou a boates. E o fato é que eu não
quero sustentar ninguém. Eu não vou trabalhar para bancar um bofe, como se fala
hoje em dia. Levar para jantar e só eu pago, só eu dou presente, só eu compro
tênis? Nada disso! Prefiro me sustentar. Aliás, nunca sustentei ninguém.
Presentear, tudo bem. Eu mesmo já recebi flores, orquídeas e até braçadas de
flores: não 12, e sim 42 rosas vermelhas. Não é chique? Foi de uma paixão, que
mora em Rotterdam, na Holanda.
Eu
o conheci numa boate, aqui no Rio. Ele estava com problema de pagar a conta,
porque só tinha dinheiro estrangeiro, e não queriam trocar. Foi uma confusão,
os seguranças já estavam em cima dele. Então eu entrei em cena e disse: “Ele
está comigo: quanto é a conta?” Paguei e acabamos ficando amigos. Saímos de lá conversando e ele
acabou dormindo comigo, na minha casa. Depois, começou um grande love. Mas antes a conversa; sentamos e
conversamos – e eu pude ver que era uma pessoa legal, que eu não iria entrar em
nenhuma cilada.
Em suma, você passa a impressão de que está muito bem consigo mesmo...
Estou sim. Graças a Deus! Hoje eu me
sinto melhor do que nunca. Até com a minha sexualidade, com o meu tesão. Estou
na minha, como se diz. Hoje, eu quero
qualidade.
*o fotógrafo Marco Rodrigues foi casado com o pintor
Jorge Guinle Filho, com quem comprou um apartamento no Leblon. Com a morte de
Guinle, por Aids, o direito de Marco à
herança foi questionado. Na época, ainda não havia a lei que regularizaria os
direitos civis (incluindo o direito de herança) dos casais homossexuais.
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