Luiz de Freitas

Luiz de Freitas - estilista

Quando se preparava para voltar ao Brasil, graças à anistia de 1979, Fernando Gabeira deu um pulo a Paris para “renovar seu guarda-roupa”. Lá, ficou sabendo, através de uma amiga, de um estilista que estava revolucionando a moda masculina no Brasil. A moça assegurou: “Você vai adorar!”. Dito e feito: já no Rio de Janeiro, instalado na casa da prima, a jornalista Leda Nagle, Gabeira foi conferir e adorou – e se tornou uma espécie de “garoto-propaganda” do estilo criado pela mente irrequieta e inventiva de Luiz de Freitas. Mas o estilista é muito mais do que isso: um grande batalhador e um gênio da costura que aos nove anos já fazia vestidos para a irmã.


Você começou a mostrar interesse pela moda muito cedo. Como foi isso?

Por sinal, essa história é muito linda. Eu tinha apenas nove anos e nós morávamos com nossa avó materna, na Raiz da Serra, em Pau Grande.
Uma tarde estava chovendo e a vovó, muito matriarcal, decretou: “Hoje ninguém sai de casa, porque pode pegar gripe!”. Então, como eu não podia ir para a rua, fui jogar cartas na vizinha, que era costureira. E foi lá que eu comecei me interessar por costura: peguei um jornal, uma fita métrica e uma régua – e comecei a riscar uma roupa igual às que ela riscava, com um método chamado “retangular”. Era assim: você fazia primeiro um quadrado e depois dobrava uma, duas ou três vezes. E aí eu disse para a minha vizinha. “Olha aqui, de tanto ver você desenhar as roupas, aprendi a fazer um molde. Agora eu preciso de tecido para cortar a roupa.”  Numa cidade toda machista, como Pau Grande, no meio operário, achei que minha avó não iria jamais me dar um tecido. (risos)

Então aos nove anos você já costurava!

 Luiz de Freitas de suspensórios
(acessório que nunca abria mão)
aos 5 anos de idade
Pois é. Aos nove anos, fiz a primeira roupa para minha irmã ir ao catecismo no domingo. Era um vestido de três saias, todo enfeitado de sianinha, com mangas fofas que eu preguei e despreguei várias vezes. Sabia que uma das coisas mais difíceis na costura é fazer uma manga que fique igual a outra? Porque você não pode pregar as duas ao mesmo tempo. O tecido era um opala branco, que minha avó acabou concordando em me dar.
A partir daí, foi uma briga. Porque, naquela época, homens costurando só havia o Dener e o Clodovil – e todos gays. Como é que um garoto do interior resolve fazer roupa?! Hoje, essa irmã, que é dona de casa e nem liga para moda se dá muito bem comigo – mas não gosta de se arrumar. Ironia, não é mesmo?

Seu lado estilista de roupas foi uma coisa que se impôs cedo para você. E como sua família reagiu?

Não muito bem, é claro! Um filho e neto de operários, que decide fazer roupas em vez de querer discutir futebol, já estava marginalizado e excluído de saída, não é mesmo? Já na fase de Petrópolis, depois da morte de meu pai, minha avó foi taxativa: “Você não vai costurar coisa nenhuma! Vai estudar e se formar, vai ser doutor”. Aliás, naquela época era o maior drama, porque no primeiro ano ginasial  meus tios se cotizavam para pagar meus estudos. Filho de pobre não tinha vaga nas escolas públicas: eram tão boas que só filho de rico conseguia entrar. A gente tinha que fazer um esforço extraordinário, e era dramático, porque você não podia tirar nota baixa...

Esta manifestação precoce de moda já tinha a ver com a homossexualidade?

É mais complicado do que isso. Eu descobri bem cedo que eu era diferente: era mais atento ao mundo feminino. Mas ao mesmo tempo, na escola primária eu tinha duas amiguinhas que eram muito brigonas. Eram duas pretinhas arretadas, e resolveram me ensinar a não levar desaforo para casa. De certa forma elas, sem saber, já praticavam bullying pesado, obrigando-me a ser brigão. A verdade é que eu tinha que revidar toda vez que um colega batia em mim. Se chegasse em casa e minha avó visse que eu tinha apanhado sem reagir, apanhava mais. Então, eu preferia bater na rua do que apanhar.

Fale um pouco mais de sua família...

Minha mãe ficou viúva muito cedo. Na época, os homens mesmo depois de casados iam servir ao exército – e o meu pai foi. E quando eu nasci, nesse ínterim, ele pegou uma pneumonia, que depois se complicou com uma meningite, e veio a falecer. Eu sou primeiro filho e primeiro neto. Tenho dois irmãos: um meio irmão do segundo casamento de minha mãe e essa irmã que odeia moda – ela diz que se soubesse quem inventou a moda ela matava (risos).
Maria e Belmiro, avós de Luiz
Pois bem, com a morte de meu pai, voltamos para a casa dos meus avós maternos. Quer dizer, na verdade eu fui criado no meio dos irmãos da minha mãe, que eram três homens – minha mãe era a única mulher ali. Ou seja, fui para um reduto predominantemente masculino. Era uma família de operários da América Fabril. Mas eu só entrei na fábrica mais tarde, depois que vovó morreu. Ela não sabia ler nem escrever, mas resolveu que o primeiro neto dela – que era eu! – iria estudar. Então, depois da escola primária, aos 11 anos, fui fazer o ginásio num colégio semi-interno em Petrópolis, o Werneck.
Acho que eu era o único preto naquela cidade. Era atração absoluta da Avenida 15 de Novembro: as pessoas esbarravam em mim, meio assustadas – afinal, ali só tinha alemão, porque era uma cidade de colonização alemã. Mas, apesar de ser filho de operários, eu não era um estudante duro, porque passava o fim de semana fazendo roupa para os vizinhos e já ganhava uma grana. Então, quando a mesada de meus colegas acabava, eu emprestava. Eu tinha 13 anos, nessa época, e já havia percebido que o que fazia ia me dar dinheiro.

E como foi a convivência como seus tios?

São todos machões, é claro, jogadores de futebol. Na verdade, eles me adoravam, mas não queriam que os amigos soubessem que eu costurava. Mas não teve jeito, isso não me reprimiu. Porque, quando a arte se manifesta e se impõe, você não controla.

Mas a morte de sua avó mudou um pouco este quadro...

E como! Eu tinha 14 anos, quando ela morreu – e então “perdi o chão”. Fiquei numa amargura tremenda, porque era ela quem bancava tudo pra mim. E lá fui eu trabalhar na América Fabril – no almoxarifado, fornecendo peças. Até que em pouco tempo eu decidi enfrentar minha família: anunciei que tinha que pedir demissão. Houve uma verdadeira guerra. Imagine: todo mundo querendo emprego e eu pedindo demissão! Foi um escândalo na cidade: “O Luiz pediu demissão!”. Logo depois, vim parar no Rio de Janeiro – e todo mundo pensava que eu estava vindo para a putaria. Na época, ainda se achava que o Rio era a terra de perdição.
É carnaval: O avô Belmiro com os netos,
Luiz de Freitas, vestido de Aladim e a lâmpada mágica
e Lurdes, irmã de Luiz, vestida de odalisca.
Mas eu, logo que cheguei, comecei a correr os ateliês – mas ninguém queria me dar emprego, porque não eu tinha experiência anterior. Resultado: tive que me conformar em trabalhar numa empresa chamada Borgoff, que fazia peças de automóvel. Eu aprendi muito rápido todo o serviço, que era uma simples questão de decoreba. Até que certo dia ganhei um dinheirinho mais graúdo no bicho e até emprestei uma parte para meu chefe, que trabalhava com sapato furado. Que cenário, hein? (risos) Foi então que eu tomei coragem, fui ao Departamento Pessoal e pedi demissão. A Dona Maria, uma portuguesa do DP, ficou inconformada, não queria me demitir, dizendo que ninguém tinha aprendido tão rápido quanto eu.

Então você persistiu no seu sonho de ser estilista.

Exatamente. Eu tinha decidido que, se eu não estivesse disposto até a passar fome em nome do meu ideal, eu não poderia dizer que tinha pelo menos tentado fazer aquilo que eu sei. Então eu fui ao limite – cheguei ao extremo. Morei na rua, dormi nos bancos da Praça Serzedelo Corrêa [em Copacabana]. Achava que se eu não batalhasse pelo meu ideal, seria um covarde!
Comecei a desenhar e voltei a visitar os ateliês de alta costura em Copacabana – era o que havia, na época. Acabei sendo aceito em um que fazia roupa para Elizeth Cardoso, Nair Bello, Dercy Gonçalves, Elza Soares e o alto escalão do Banco Central. Eu desenhava as roupas e uma mulher que eu conheci, chamada Mary Galvão, fazia bordados. Ela foi meu primeiro grande amor – depois eu falo mais sobre ela... (risos) E foi assim que eu comecei a me enturmar ali. Depois fui desenhar para os costureiros mais famosos do Rio de Janeiro: Hugo Rocha e Zé Ronaldo. Mas quando estava começando a me dar bem, fazendo roupa sob medida, veio a criação de Brasília e a transferência da capital. Houve um tremendo esvaziamento do Rio de Janeiro: a grana foi embora da Cidade Maravilhosa...

E como você reagiu a este imprevisto?

Bem, nós brasileiros somos fantásticos: é na dificuldade que nos tornamos mais criativos. Foi nessa altura que eu comecei a compreender que o futuro não estava nas roupas sob medida. Descobri que as mulheres já não tinham grana suficiente de fazer três provas de um vestido, roupas com dois ou três forros. Resultado: lancei o prêt-a-porter – fui um precursor. Comecei a fazer roupas em série para vender para as butiques.
Na época, nem havia muitas:em Copacabana só tinha a Laís, na Inhangá, e a Mônaco da Delma - que me apelidou de Sammy Davis Jr. (risos). Havia também, em Ipanema, uma butique chamada Luanda, que ficava em frente ao Bob’s, cujo dono era o homem mais bonito,  mais elegante  e mais chique do Rio: o Bob Falkenbourg, que depois foi casado com a Sylvia Bandeira. Ele era belo!! Havia também a butique Mariazinha, muito chique [em Ipanema, da Mara, que agora se chama Mara Mac]. Depois surgiram a butique do Aparício Basílio, que também era dono da Rastro, e o Zé Luiz, com a Bibba, numa época em que Mary Quant já pontificava em Londres.
A essa altura, eu já estava fazendo uma roupa no gênero Kenzo, toda a partir de retalhos. Porque eu cheguei à conclusão de que as garotas não queriam mais se vestir igual às mães, e as mães em pânico porque a moda jovem era o jeans imundo, comprado no Lixão da rua Siqueira Campos. E as mães estavam apavoradas porque assim elas não iriam arranjar um bom partido, para casamento (risos).

A esta altura, você começou a fazer sucesso?

Quem dera! O problema é que, quando comecei a fazer roupa em série para as butiques, logo descobri que elas estavam me copiando. A “Lá Na Modinha”, por exemplo, foi uma delas: compravam um modelo e copiavam 20. Um dia cheguei lá e flagrei os funcionários copiando meus modelos em papel-manteiga.
Nessa época, eu morava com a Mary num edifício na esquina da rua Rodolfo Dantas com a avenida Copacabana. Tínhamos uma cliente ali que era dona de uma loja na rua Barata Ribeiro. Ali onde é o Oscar, roupas masculinas sob medida. Mas eu não parava. Acabei indo trabalhar na tal Luanda, que não era só butique – tinha uma parte onde vendia tecido a metro, que foi onde eu consegui emprego. E foi ali que minha sorte começou a mudar, porque conheci a Helena Arouchelas, compradora de roupas da loja, e que se tornou minha madrinha profissional, e uma grande amiga. Ela se casou com o Ernane Galvêas, que foi presidente do Banco Central. A primeira roupa que fiz, mostrei e ela adorou: encomendou 12 roupas.
O problema é que eu não tinha dinheiro para fazer nem uma roupa – imagine só uma dúzia! Mas saí da butique tão eufórico que quase fui atropelado. Então corri até a rua Camerino, no Centro na cidade, onde eu conhecia um atacadista. Contei minha história para ele, um português chamado Rodrigues. O homem ficou tão emocionado que me deu crédito e vendeu para mim. Depois acabei me tornando seu maior cliente.

E assim você começou...

Exatamente: comecei a fazer roupa em série. Então resolvi retornar a Pau Grande e pedir para uma costureira de lá trabalhar para mim. Mas, para minha decepção, ela respondeu que só costurava para o marido e as filhas. Foi uma dureza convencê-la, mas ela acabou se tornando minha sócia: dona Eurelina! Em três anos em que trabalhou comigo, dei um carro zero para ela, de tanto que ela produziu. E assim eu comecei a fazer prêt-a-pôrter, na casa de dona Eurelina. As filhas nem conseguiam dormir, coitadas, porque as costureiras ficavam trabalhando até tarde na cama delas. Eu morava no Rio, mas ia todo o dia para Pau Grande.
Começamos assim e, em um ano, já fazíamos roupa para butique. O  desenvolvimento foi tamanho que nos mudamos três vezes, sempre aumentando o espaço físico. Tanto que cheguei a ter 100 costureiras. Era o auge do Caetano  Veloso, Gilberto Gil, Roberto Carlos... O [bar] Zepelin, o boom de Ipanema, Hugo Bidet, Ziraldo, Danuza Leão e Duda Cavalcanti - as musas - Tom Jobim, Vinicius de Moraes... Uma loucura! Houve uma verdadeira virada dessa geração e ela se refletiu na moda. E eu peguei o bonde.

Quando você abriu sua primeira loja?

Eu comecei com roupa fina e chique, com uma marca chamada Belui. As pessoas perguntavam e eu explicava que era uma junção de Belmiro e Luiz, porque eu gostava de combinar nomes. Mas uma venenosa – sempre tem venenosas na moda! – veio perguntar se eu estava me chamando de “Belo Luiz”. (risos)
Mas a fama ainda não tinha chegado: eu precisava de mais projeção. A coisa começou com a primeira entrevista, que foi para a [jornalista de moda] Gilda Chataignier, do Jornal do Brasil—que eu considero minha papisa. Não esperei ela me descobrir: criei coragem e fui até lá, bater na porta! (risos). Na redação, fiquei andando de um lado para o outro até me deparar com ela – muito estilosa, por sinal. Eu queria desenhar para o jornal, mas já havia uma certa Diana, que fazia umas bonecas com uns olhos grandes.
Quando eu mostrei meus desenhos a Gilda respondeu: “Infelizmente, não tenho espaço para você nesse momento, mas bolei uma matéria sobre pessoas que estão despontando nos mais diferentes segmentos de arte, e na moda  e vou entrevistar você”. E foi assim que eu vi meus desenhos publicados pela primeira vez no Caderno B – na época, o JB era o máximo. Tanto que, depois dessa primeira entrevista, uma perua da moda disse: “Como é que esse garoto que veio do interior sabe abrir a boca?”. (risos)

Qual era o nome da sua loja?

Luiz de Freitas de saia, em São Paulo, onde realizou,
nos anos 80, época do Grupo Moda Rio,
um desfile com o estilista francês Jean Paul Gaultier,
com patrocínio da Trevira.
Mr. Wonderful, Number One. Eu vestia a intelectualidade contemporânea do Rio de Janeiro, como escritores, cineastas e artistas. Vesti Caetano Veloso, Fernando Gabeira, Ziraldo e até o Roberto Carlos – a Maria Rita, mulher dele, comprava lá. Por sinal, eu já conhecia Roberto, porque o tinha convidado para ir a Pau Grande na época da [música] Splish Splash. A loja durou uns 10 anos- e foi um sucesso. Tinha filiais na Alemanha, em Amsterdã, um show room em Nova York, loja em Belo Horizonte, Salvador, duas lojas em São Paulo e três em Portugal – uma no Porto e duas em Lisboa. Todas as filiais fora do Rio eram em sociedade com pessoas daqui e de lá. Todos morreram de AIDS.
Os preços eram altos – e chamavam a atenção. Lembro que uma vez o Moraes Moreira foi ao programa do Jô Soares e ele [o apresentador] comentou: “Que linda camisa! Você comprou em Nova York?”. E o Moraes: “Não, comprei numa loja aqui em SP, a Mr. Wonderful!”. E então o Jô: “Então, você está com grana....” Tive de mandar uma correspondência para ele, explicando que não era bem assim. Eram, acima de tudo, roupas diferenciadas, usadas por artistas.

Você também teve uma “clínica de moda”. Como foi isso?

A ideia nasceu numa época em que eu fiz uma viagem a Nova York. Eu viajei muito, desde cedo: interrompi minha vida de estudante para me dedicar a moda e tinha como meta sair do Brasil, conhecer a Europa e muitos países bem exóticos, para me inspirar... Pois foi em Nova York que eu conheci a casa de um rapaz moderno – gay de alma – onde todos os armários eram de portas abertas, uma coisa muito linda. Então eu pensei: os homens no Brasil querem isso... Mas eu também achava que eles não estavam prontos para aceitar tanta mudança, porque eram muito machistas.
Socialmente, os homens se vestiam muito mal. O homem brasileiro era conhecido pela cafonice. A lapela do paletó era grande demais, o colarinho brigando com o paletó, a calça caindo em cima do sapato – era um desastre! Esse era  o perfil do brasileiro. Então, meu trabalho com moda masculina foi de fora para dentro. Queria provocar os homens, com minhas roupas, chamando-os de “Mr. Wonderful” – mas antes eu precisava prepará-los psicologicamente.
Foi assim que decidi abrir uma clínica de moda, que ajudasse a implantar um comportamento moderno, com estilo de roupas, num ambiente estiloso. Era toda decorada com móveis antigos de hospital. E parecia mesmo uma clínica de estética. A gente conversava, discutia – em suma, fazia a cabeça dos homens. Eles já saíam de lá com as novas roupas, levando na sacola aquelas com que tinham chegado à loja. Tomavam o famoso “banho de loja”.

Nessa época, você se tornou famoso por causa do apoio da mídia, não é verdade?

Luiz de Freitas e a maravilhosa Veluma,
primeira modelo negra brasileira.
Sem dúvida! Nessa época da clinica, a TV Globo me deu uma tremenda projeção. Ela pegava meus modelos e eu escolhia os manequins – e fazíamos um desfile na hora do almoço no Edifício Avenida Central [no centro da cidade]. A repórter descia e subia a escada rolante – que, por sinal, era famosa por ter sido  a primeira escada rolante do Rio de Janeiro.
Os manequins ficavam circulando todos muito coloridos e a repórter perguntava para as mulheres que trabalhavam no local se os maridos usariam aquele roupa. Isso gerava uma discussão positiva entre elas – que confessavam que não gostavam que seus maridos fossem caretas.

Em suma: você criou um novo conceito em moda masculina...

É verdade. Aliás, tenho passagens muito engraçadas a esse respeito. Certa vez,
Luiz de Freitas  a com a modelo Lampito,
na época em que criou a etiqueta Mr. Wonderful.
uma mulher argentina entrou na loja e começou a escolher e comprar roupas... para ela. Num dado momento, ela parou para fumar um cigarro e disse que estava adorando – e então perguntou onde poderia comprar roupa para o marido. Aí eu disse, sorrindo, que ela já estava comprando numa loja de roupas masculinas (risos).

Mas como (e por que) todo esse sucesso acabou?

Porque no início da década de 1990 veio o Plano Collor, que abriu a exportação da noite para o dia – e ferrou todo mundo. Eu simplesmente fali, porque não estava estruturado para essa “abertura dos portos”. O meu público era de artistas, que queriam roupas diferenciadas e não queriam se vestir como o público deles. Além disso, meu dinheiro ficou preso, assim como o dinheiro dos artistas – a minha clientela. Muitos perderam dinheiro, eu mesmo não estava estruturado. Era eu quem bancava toda a mídia de eventos. Hoje, você não faz nada sem patrocínio, mas eu sou de uma fase anterior a esses esquemas. Ganhávamos de um lado e perdíamos do outro – porque bancávamos tudo, de cabo a rabo.

Você pagou caro pelo seu pioneirismo...

Pois é. Toda essa época foi muito adversa. Outra coisa: era eu quem vestia o pessoal do programa Globo Esporte da TV Globo. Botei os apresentadores com camisas de uma mesma cor, vesti  blazers nos apresentadores de futebol – e fiz tudo isso sem ganhar pela “consultoria”. Quando a Marluce entrou no lugar do Boni, passou a pedir três orçamentos. E eu cobrava 42 reais por uma camisa de manga curta – enquanto o pessoal de São Paulo apresentava orçamento cobrando 12 reais! Na verdade, os paulistas queriam desbancar a turma do Rio, porque quem inventou o boom da moda foram os cariocas. E os paulistas vieram atrás da gente...

Você chegou a participar daqueles esquemas de permuta de roupas com artistas?

Nunca! Aliás, até hoje eu rezo pela alma do Dr. Roberto Marinho, porque ele mudou esse conceito: ele recomendava às funcionárias que comprassem e até negociassem o preço, mas que sempre pagassem pelas roupas e nunca pedissem  emprestado. Porque as lojas já enfrentavam a produção do cinema nacional, que não tinha um tostão... E as produções de teatro eram pior ainda! Sem falar das produções de anúncios para as agências de publicidade, cujo boom aconteceu depois da moda: os diretores de arte das agências mandavam seus funcionários pedirem roupas emprestadas, mas depois nem nos davam o crédito nos anúncios...! Outro caso: certa vez, uma moça pediu uma gravata borboleta emprestada para o Roberto Carlos, o REI! Nessa, eu não aguentei: “Olha, se Roberto Carlos sonhar que você está pedindo isso emprestado, manda você para a rua imediatamente.”

Existe preconceito em relação quem faz moda no Brasil?

Claro que existe. Principalmente quando você ganha dinheiro – então, é uma ciumeira danada! Muita gente não entende que existe também o fator sorte, a competência administrativa... Eu acho que moda é arte, mas tem gente que ainda se pergunta se moda é cultura...

E como você vê esta questão da homofobia?

Isso é uma coisa antiga, não é mesmo? Aliás, sobre este ponto, eu me lembro de uma história muito engraçada do Clóvis Bornay. Certa vez, o governo de São Paulo resolveu fazer um baile carnavalesco com desfile de fantasias no Teatro Municipal, semelhante ao do Rio de Janeiro. Então, lá foram os concorrentes  de fantasias, daqui – todos gays, cada um com sua fantasia mais caprichada. Quando acabou o desfile, depois da classificação, os candidatos foram descansar no ônibus. Era bem tarde da noite. Então, aqueles velhinhos insones, que moravam na região e saíam de madrugada para a rua, disseram: “Estão vendo ali, aqueles rapazes? São todos viados!”. O Clóvis Bornay escutou e chamou o homem: “Moço, o senhor disse que nós somos todos viados. Mas viado é quem dá o cú – e nós somos artistas!”. Acho que isso resume bem o que eu penso.

Quando você assumiu sua homossexualidade?

Foi no início da década de 1980. Mas minha história sexual já vinha lá de trás, porque eu já me deparava com a homossexualidade lidando com as roupas femininas. Quando a roupa masculina entrou na minha vida, foi uma coisa mais definitiva, uma virada comportamental (antes, eu só fazia roupa feminina). Tudo está ligado à costura, é claro: aos 12 anos eu ensinei moda a um amigo e aquela foi minha primeira manifestação de que eu me identificava com pessoas do mesmo sexo. Mas achei que era quase impossível dar ênfase a isso, a não ser através da costura.

Essa sua descoberta da homossexualidade gerou alguma angústia?

Certamente, gerou angústia e sofrimento, porque é uma coisa muito difícil. Porque na primeira adolescência a pessoa já se depara com toda uma série de dificuldades “normais” – e ainda por cima essa! Graças a Deus, eu consegui superar muito bem essa situação porque eu ganhava dinheiro num ambiente em que havia muita dureza, à minha volta. De certa forma, o dinheiro se sobrepunha à questão do sexo.

No início você tinha algum parente com quem pudesse se abrir?

Não, tinha era uma dificuldade muito grande. Além do ambiente machista da minha família, eu pertenço a uma geração que não fazia perguntas – era tudo na base da “boca-de-siri”... Ninguém questionava, e se alguém desconfiasse, fingia que não sabia de nada. Nunca vieram me perguntar de quem eu gostava, ou se eu gostava de alguém... E ir a um psicanalista era uma coisa muito rara, caríssima, inacessível à classe média. Só os muito ricos é que faziam, na época, terapia no Brasil.
Minha mãe gostava muito de mim, é claro – principalmente porque eu ganhava dinheiro e podia dar conforto a ela. Mas ela também admirava  muito meu talento. Tanto que, quando fui fazer o Globo Repórter com ela,  fiz questão de mostrar sua maquina de costura e dizer: “Eu comecei nessa máquina, de mamãe!”. No dia seguinte, ela ofereceu um almoço às amigas, para comemorar essa participação no programa.
Mas o fato é que, sexualmente, eu nunca me abri para minha família. Nunca houve perguntas. Até hoje. Para eles, sou um artista assexuado. Mas a verdade é que minha situação financeira se sobrepôs à minha sexualidade. E a verdade é que eu soube ser grato, e retribuir. Meus tios se cotizaram para pagar meus estudos, meu curso ginasial – o que me ajudou na profissão, porque me deu cultura. Resultado: dei uma casa para cada um do meus três tios. Pois não se pode ser estilista sem ter cultura!!

Existe algum outro gay na sua família?

Existe sim: um primo e um tio – mas são gays “de alma”, que não botaram para fora. São muito mais do que simpatizantes, pessoas altamente sensíveis à causa.  Aliás, eu tenho lido bastante sobre essas coisas: dizem que, quando a mulher está no terceiro mês de gravidez, pode haver uma perda do hormônio masculino. Acredito que seja algo assim. O fato é que eu conheço oito irmãos gays de Uberlândia. Somente a irmã, a nona, não é.

Durante algum tempo você teve uma participação bastante ativa em favor dos homossexuais.

Sim. Eu trabalhei diretamente pela causa gay: nos anos 1980, fundei um movimento chamado FALE AIDS, que tinha sede no Centro do Rio – e não existe mais. Na época, estavam discutindo a questão das células T4 [um tipo especial de glóbulos brancos que desempenham um papel importante e central no sistema imunológico do corpo humano] e o Governo só queria dar medicamentos – o chamado coquetel – para aqueles que estavam com as taxas muito baixas. Resolvi fundar o movimento justamente para poder doar os remédios. Era só isso o que nós fazíamos: distribuir o “coquetel”.
Fiz um desfile de moda no Barra Shopping  e coloquei 30 aidéticos na passarela – homens, mulheres e crianças – que entravam com uma faixa dizendo: “O coquetel é para todos!”. Para mim, a moda só tem representatividade por ser comportamental. Depois, o próprio Governo passou a distribuir os medicamentos para todos – mas antes, no início, nós pedíamos dinheiro para pessoas. Chegamos a fazer um show com a Elba Ramalho no Teatro Rival. O grande problema, nessa época, é que os aidéticos morriam porque não tinham dinheiro para comprar os medicamentos.

O que você acha das agressões aos homossexuais, que são praticamente diárias no Brasil?

Sem dúvida isso é um absurdo, porque é a mesma situação da mulher. No fundo, o grande problema é a hipocrisia. A igreja católica não aceita o homossexual. A Lei Maria da Penha já é uma realidade, uma grande conquista – mas não se criou o equivalente para os gays. Acho que é uma coisa cultural. As próprias mulheres não interpretam a Lei Maria da Penha corretamente, porque são preconceituosas. Há o maior descaso quando um gay denuncia algo no Brasil. Resultado: um gay é morto quase todos os dias.

Qual a maior ameaça para os homossexuais: os skinheads, os políticos, os garotos de programa ou a sociedade como um todo?

Acho que é tudo isso junto! Todo mundo é um pouco culpado, principalmente os partidos, que deveriam ter uma voz, fazer mais pressão. Mas acontece uma triste realidade: gay não vota em gay, mulher não vota em mulher – aliás, elas não vão nem a médicas mulheres, sabia? É claro que isso não começou agora... Hitler colocou os gays nos campos de concentração. Cuba e a Rússia botavam os gays em prisões. E, mais lá atrás, havia a Santa Inquisição... Quer dizer, é uma situação mais geral, e muito grave. Eu procuro me manter sempre informado, querendo ser quase um especialista no assunto.

Por que você acha que as pessoas, em geral, não assumem sua homossexualidade?

Isso também é um drama muito antigo. E é um erro. Aliás, eu não tenho amigos homossexuais que vivem “dentro do armário” porque eu não confio em pessoas que não se assumem. Não servem para mim como amizade. Por isso é uma questão de caráter: é fundamental que o ser humano seja autentico. Também não me relaciono com gay casado com mulher. Enfim, meus amigos são todos muito bem resolvidos com sua sexualidade. São felizes, maravilhosos, e eu os respeito muito.

O governo do PT tem ressarcido os presos políticos. Por que você acha que nunca se ressarciu a família de um homossexual assassinado?

Mais uma vez: é uma questão cultural, de preconceito. Isso é uma verdadeira doença, que não acaba da noite para o dia . Está entranhado na sociedade brasileira. No fundo, o brasileiro não tem preconceito contra dinheiro. Uma amiga minha, escocesa, dizia uma grande verdade: “Dinheiro não tem preconceito”. É isso mesmo: dinheiro não quer saber na mão de quem está. Eu mesmo já senti isso na pele. Nunca sofri preconceito porque tive dinheiro, e recebia em sociedade com champanhe francesa, naturellement ...!!

Você não acha que também é preciso investir numa educação mais comprometida com estes temas?

Sem dúvida! Ainda bem que estas coisas estão mudando. Tempos atrás, o filho de uma conhecida jornalista de moda deu uma porrada num menino que quis segurar o pinto dele no banheiro da escola. A jornalista deu uma bronca e corrigiu: “Isto não se faz, não admito. Você tinha que dizer para o outro menino que essa não era a sua, e não bater”. Mas nem todos têm esta mentalidade mais aberta. Por exemplo, tenho um amigo que estudou  num colégio de padres: uma vez, ele segurou o pinto de outro garoto. Aí chamaram psicólogos e os pais deste meu amigo – numa tentativa de curar a gayzisse dele. Não adiantou nada: hoje ele continua gayzíssimo, feliz e muito realizado profissionalmente: fala seis idiomas, fluentemente!
 Luiz de Freitas e o jornalista Antonio Jorge,
nos anos 80, mais precisamente  no dia da
inauguração da loja Mr.Wonderful
em Amsterdam, Holanda.

Você fala pouco de seus amores...

Sou o último romântico. Tudo na minha vida vem através de uma paixão. A dona do ateliê de que lhe falei, a Mary Galvão, se apaixonou por mim, e foi o primeiro romance assumido que tive. Porque até então eu achava que só gostava de homem, e até já havia tido um caso no ginásio – aquele rapaz a quem ensinei tudo, que alfabetizei na moda. Foi uma paixão que virou parceria profissional. Ele tornou-se sócio quando abri uma indústria. A outra paixão impressionante foi a Mary, que foi minha amante. Ela era casada com um delegado de polícia, que gostava mais de cachorro do que das pessoas. Tinha quatro filhos adotivos. 

Como você “sobreviveu” à Aids?

Na época do boom da doença, eu morava em Nova York e corria riscos, porque não usava preservativo. (Pois é, parece que existem organismos que não pegam a doença...) Eu tinha o comportamento como o de todo mundo, talvez um pouco menos promiscuo, mais romântico. No fundo, eu sou um milagre ambulante. E, já que estou falando das minhas paixões na época (entre os anos 70 e 80) eu tinha um companheiro, um namorado holandês lindo de morrer. Ele foi uma grande paixão, uma coisa extraordinária. Um romance que durou 18 anos, e só acabou porque eu o mandei embora. Hoje ele é casado e tem filhos, mora na Holanda. Tornou-se um dos maiores importadores de suco de laranja do Brasil.

E atualmente? Você ainda luta de alguma forma em favor da cidadania dos gays?

Eu procuro estar sempre atualizado: acompanho mundialmente os acontecimentos, aqui e nos países mais adiantados. Interesso-me muito por isso porque tudo se aplica. É lamentável: hoje, com a globalização, deveria haver um contexto geral, mais igualitário, mas infelizmente não é assim.

Mas você não se aposentou: ainda trabalha, por exemplo, para o carnaval...

Há 10 anos trabalho com o Carlinhos de Jesus, fazendo figurinos para escolas de samba. A parceria começou quando a Mangueira ia desfilar com o enredo de Chico Buarque e o Carlinhos, que foi meu cliente na loja, perguntou se eu não queria fazer o figurino. Eu disse: “Essa não é a minha praia, mas enfrentar desafios é comigo mesmo!” Eu adoro o novo, como não iria aceitar? Então fizemos os Malandros da Lapa, que foi um sucesso extraordinário, e ganhamos o primeiro Estandarte de Ouro [prêmio do jornal O Globo]. E assim começou a parceria, que dura até hoje. Acho que dou sorte. (risos)

Em suma: você não ficou rico.

Não de jeito nenhum. Até hoje eu trabalho para me sustentar.

Você acha difícil ser empreendedor no Brasil?


Principalmente na moda: fazendo arte, acho muito difícil. Ainda não vi – e me pergunto se algum dia vou ver...Será? Vou me deitar ...!

Um comentário:

  1. Boa tarde! Em nome de José Augusto Bicalho, desejo contato de Luis de Freitas para reaproximação da amizade dos dois. Pedir ao Luis fazer contato. Grata

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