Luiz
de Freitas - estilista
Quando
se preparava para voltar ao Brasil, graças à anistia de 1979, Fernando Gabeira
deu um pulo a Paris para “renovar seu guarda-roupa”. Lá, ficou sabendo, através
de uma amiga, de um estilista que estava revolucionando a moda masculina no
Brasil. A moça assegurou: “Você vai adorar!”. Dito e feito: já no Rio de
Janeiro, instalado na casa da prima, a jornalista Leda Nagle, Gabeira foi
conferir e adorou – e se tornou uma espécie de “garoto-propaganda” do estilo
criado pela mente irrequieta e inventiva de Luiz de Freitas. Mas o estilista é muito mais do que isso: um
grande batalhador e um gênio da costura que aos nove anos já fazia vestidos
para a irmã.
Você começou a mostrar
interesse pela moda muito cedo. Como foi isso?
Por sinal, essa história é muito linda. Eu tinha apenas nove anos e nós
morávamos com nossa avó materna, na Raiz da Serra, em Pau Grande.
Uma tarde estava chovendo e a vovó, muito matriarcal, decretou: “Hoje
ninguém sai de casa, porque pode pegar gripe!”. Então, como eu não podia ir
para a rua, fui jogar cartas na vizinha, que era costureira. E foi lá que eu
comecei me interessar por costura: peguei um jornal, uma fita métrica e uma
régua – e comecei a riscar uma roupa igual às que ela riscava, com um método
chamado “retangular”. Era assim: você fazia primeiro um quadrado e depois
dobrava uma, duas ou três vezes. E aí eu disse para a minha vizinha. “Olha
aqui, de tanto ver você desenhar as roupas, aprendi a fazer um molde. Agora eu
preciso de tecido para cortar a roupa.”
Numa cidade toda machista, como Pau Grande, no meio operário, achei que
minha avó não iria jamais me dar um tecido. (risos)
Então aos nove anos
você já costurava!
Luiz de Freitas de suspensórios (acessório que nunca abria mão) aos 5 anos de idade |
A partir daí, foi uma
briga. Porque, naquela época, homens costurando só havia o Dener e o Clodovil –
e todos gays. Como é que um garoto do interior resolve fazer roupa?! Hoje, essa
irmã, que é dona de casa e nem liga para moda se dá muito bem comigo – mas não
gosta de se arrumar. Ironia, não é mesmo?
Seu lado estilista de
roupas foi uma coisa que se impôs cedo para você. E como sua família reagiu?
Não muito bem, é claro! Um filho e neto de operários, que decide fazer
roupas em vez de querer discutir futebol, já estava marginalizado e excluído de
saída, não é mesmo? Já na fase de Petrópolis, depois da morte de meu pai, minha
avó foi taxativa: “Você não vai costurar coisa nenhuma! Vai estudar e se
formar, vai ser doutor”. Aliás, naquela época era o maior drama, porque no
primeiro ano ginasial meus tios se
cotizavam para pagar meus estudos. Filho de pobre não tinha vaga nas escolas
públicas: eram tão boas que só filho de rico conseguia entrar. A gente tinha
que fazer um esforço extraordinário, e era dramático, porque você não podia
tirar nota baixa...
Esta manifestação
precoce de moda já tinha a ver com a homossexualidade?
É mais complicado do que isso. Eu
descobri bem cedo que eu era diferente: era mais atento ao mundo feminino. Mas
ao mesmo tempo, na escola primária eu tinha duas amiguinhas que eram muito
brigonas. Eram duas pretinhas arretadas,
e resolveram me ensinar a não levar desaforo para casa. De certa forma elas,
sem saber, já praticavam bullying
pesado, obrigando-me a ser brigão. A verdade é que eu tinha que revidar toda
vez que um colega batia em mim. Se chegasse em casa e minha avó visse que eu
tinha apanhado sem reagir, apanhava mais. Então, eu preferia bater na rua do
que apanhar.
Fale um pouco mais de
sua família...
Minha mãe ficou viúva muito cedo. Na época, os homens mesmo depois de
casados iam servir ao exército – e o meu pai foi. E quando eu nasci, nesse
ínterim, ele pegou uma pneumonia, que depois se complicou com uma meningite, e
veio a falecer. Eu sou primeiro filho e primeiro neto. Tenho dois irmãos: um
meio irmão do segundo casamento de minha mãe e essa irmã que odeia moda – ela
diz que se soubesse quem inventou a moda ela matava (risos).
Maria e Belmiro, avós de Luiz |
Pois bem, com a morte de
meu pai, voltamos para a casa dos meus avós maternos. Quer dizer, na verdade eu
fui criado no meio dos irmãos da minha mãe, que eram três homens – minha mãe
era a única mulher ali. Ou seja, fui para um reduto predominantemente masculino.
Era uma família de operários da América Fabril. Mas eu só entrei na fábrica
mais tarde, depois que vovó morreu. Ela não sabia ler nem escrever, mas
resolveu que o primeiro neto dela – que era eu! – iria estudar. Então, depois
da escola primária, aos 11 anos, fui fazer o ginásio num colégio semi-interno
em Petrópolis, o Werneck.
Acho que eu era o único
preto naquela cidade. Era atração absoluta da Avenida 15 de Novembro: as
pessoas esbarravam em mim, meio assustadas – afinal, ali só tinha alemão, porque
era uma cidade de colonização alemã. Mas, apesar de ser filho de operários, eu
não era um estudante duro, porque passava o fim de semana fazendo roupa para os
vizinhos e já ganhava uma grana. Então, quando a mesada de meus colegas
acabava, eu emprestava. Eu tinha 13 anos, nessa época, e já havia percebido que
o que fazia ia me dar dinheiro.
E como foi a
convivência como seus tios?
São todos machões, é claro, jogadores de futebol. Na verdade, eles me
adoravam, mas não queriam que os amigos soubessem que eu costurava. Mas não
teve jeito, isso não me reprimiu. Porque, quando a arte se manifesta e se
impõe, você não controla.
Mas a morte de sua
avó mudou um pouco este quadro...
E como! Eu tinha 14 anos, quando ela morreu – e então “perdi o chão”.
Fiquei numa amargura tremenda, porque era ela quem bancava tudo pra mim. E lá
fui eu trabalhar na América Fabril – no almoxarifado, fornecendo peças. Até que
em pouco tempo eu decidi enfrentar minha família: anunciei que tinha que pedir
demissão. Houve uma verdadeira guerra. Imagine: todo mundo querendo emprego e
eu pedindo demissão! Foi um escândalo na cidade: “O Luiz pediu demissão!”. Logo
depois, vim parar no Rio de Janeiro – e todo mundo pensava que eu estava vindo
para a putaria. Na época, ainda se
achava que o Rio era a terra de perdição.
É carnaval: O avô Belmiro com os netos, Luiz de Freitas, vestido de Aladim e a lâmpada mágica e Lurdes, irmã de Luiz, vestida de odalisca. |
Então você persistiu
no seu sonho de ser estilista.
Exatamente. Eu tinha decidido que, se eu não estivesse disposto até a
passar fome em nome do meu ideal, eu não poderia dizer que tinha pelo menos
tentado fazer aquilo que eu sei. Então eu fui ao limite – cheguei ao extremo.
Morei na rua, dormi nos bancos da Praça Serzedelo Corrêa [em Copacabana]. Achava que se eu não batalhasse pelo meu ideal,
seria um covarde!
Comecei a desenhar e
voltei a visitar os ateliês de alta costura em Copacabana – era o que havia, na
época. Acabei sendo aceito em um que fazia roupa para Elizeth Cardoso, Nair
Bello, Dercy Gonçalves, Elza Soares e o alto escalão do Banco Central. Eu
desenhava as roupas e uma mulher que eu conheci, chamada Mary Galvão, fazia
bordados. Ela foi meu primeiro grande amor – depois eu falo mais sobre ela... (risos) E foi assim que eu comecei a me
enturmar ali. Depois fui desenhar para os costureiros mais famosos do Rio de
Janeiro: Hugo Rocha e Zé Ronaldo. Mas quando estava começando a me dar bem,
fazendo roupa sob medida, veio a criação de Brasília e a transferência da
capital. Houve um tremendo esvaziamento do Rio de Janeiro: a grana foi embora
da Cidade Maravilhosa...
E como você reagiu a
este imprevisto?
Bem, nós brasileiros somos fantásticos: é na dificuldade que nos
tornamos mais criativos. Foi nessa altura que eu comecei a compreender que o
futuro não estava nas roupas sob medida. Descobri que as mulheres já não tinham
grana suficiente de fazer três provas de um vestido, roupas com dois ou três
forros. Resultado: lancei o prêt-a-porter
– fui um precursor. Comecei a fazer roupas em série para vender para as
butiques.
Na época, nem havia
muitas:em Copacabana só tinha a Laís, na Inhangá, e a Mônaco da Delma - que me
apelidou de Sammy Davis Jr. (risos).
Havia também, em Ipanema, uma butique chamada Luanda, que ficava em frente ao
Bob’s, cujo dono era o homem mais bonito,
mais elegante e mais chique do
Rio: o Bob Falkenbourg, que depois foi casado com a Sylvia Bandeira. Ele era
belo!! Havia também a butique Mariazinha, muito chique [em Ipanema, da Mara, que agora se chama Mara Mac]. Depois surgiram
a butique do Aparício Basílio, que também era dono da Rastro, e o Zé Luiz, com
a Bibba, numa época em que Mary Quant já pontificava em Londres.
A essa altura, eu já
estava fazendo uma roupa no gênero Kenzo, toda a partir de retalhos. Porque eu
cheguei à conclusão de que as garotas não queriam mais se vestir igual às mães,
e as mães em pânico porque a moda jovem era o jeans imundo, comprado no Lixão da rua Siqueira Campos. E as mães
estavam apavoradas porque assim elas não iriam arranjar um bom partido, para
casamento (risos).
A esta altura, você
começou a fazer sucesso?
Quem dera! O problema é que, quando comecei a fazer roupa em série para
as butiques, logo descobri que elas estavam me copiando. A “Lá Na Modinha”, por
exemplo, foi uma delas: compravam um modelo e copiavam 20. Um dia cheguei lá e
flagrei os funcionários copiando meus modelos em papel-manteiga.
Nessa época, eu morava com
a Mary num edifício na esquina da rua Rodolfo Dantas com a avenida Copacabana.
Tínhamos uma cliente ali que era dona de uma loja na rua Barata Ribeiro. Ali
onde é o Oscar, roupas masculinas sob medida. Mas eu não parava. Acabei indo
trabalhar na tal Luanda, que não era só butique – tinha uma parte onde vendia
tecido a metro, que foi onde eu consegui emprego. E foi ali que minha sorte
começou a mudar, porque conheci a Helena Arouchelas, compradora de roupas da
loja, e que se tornou minha madrinha profissional, e uma grande amiga. Ela se
casou com o Ernane Galvêas, que foi presidente do Banco Central. A primeira
roupa que fiz, mostrei e ela adorou: encomendou 12 roupas.
O problema é que eu não
tinha dinheiro para fazer nem uma roupa – imagine só uma dúzia! Mas saí da
butique tão eufórico que quase fui atropelado. Então corri até a rua Camerino,
no Centro na cidade, onde eu conhecia um atacadista. Contei minha história para
ele, um português chamado Rodrigues. O homem ficou tão emocionado que me deu
crédito e vendeu para mim. Depois acabei me tornando seu maior cliente.
E assim você
começou...
Exatamente: comecei a fazer roupa em série. Então resolvi retornar a Pau
Grande e pedir para uma costureira de lá trabalhar para mim. Mas, para minha
decepção, ela respondeu que só costurava para o marido e as filhas. Foi uma
dureza convencê-la, mas ela acabou se tornando minha sócia: dona Eurelina! Em
três anos em que trabalhou comigo, dei um carro zero para ela, de tanto que ela
produziu. E assim eu comecei a fazer prêt-a-pôrter,
na casa de dona Eurelina. As filhas nem conseguiam dormir, coitadas, porque
as costureiras ficavam trabalhando até tarde na cama delas. Eu morava no Rio,
mas ia todo o dia para Pau Grande.
Começamos assim e, em
um ano, já fazíamos roupa para butique. O
desenvolvimento foi tamanho que nos mudamos três vezes, sempre
aumentando o espaço físico. Tanto que cheguei a ter 100 costureiras. Era o auge
do Caetano Veloso, Gilberto Gil, Roberto
Carlos... O [bar] Zepelin, o boom de Ipanema, Hugo Bidet, Ziraldo,
Danuza Leão e Duda Cavalcanti - as musas - Tom Jobim, Vinicius de Moraes... Uma
loucura! Houve uma verdadeira virada dessa geração e ela se refletiu na moda. E
eu peguei o bonde.
Quando você abriu sua
primeira loja?
Eu comecei com roupa fina e chique, com uma marca chamada Belui. As
pessoas perguntavam e eu explicava que era uma junção de Belmiro e Luiz, porque
eu gostava de combinar nomes. Mas uma venenosa
– sempre tem venenosas na moda! –
veio perguntar se eu estava me chamando de “Belo Luiz”. (risos)
Mas a fama ainda não tinha
chegado: eu precisava de mais projeção. A coisa começou com a primeira
entrevista, que foi para a [jornalista de
moda] Gilda Chataignier, do Jornal do
Brasil—que eu considero minha papisa. Não esperei ela me descobrir: criei
coragem e fui até lá, bater na porta! (risos).
Na redação, fiquei andando de um lado para o outro até me deparar com ela –
muito estilosa, por sinal. Eu queria
desenhar para o jornal, mas já havia uma certa Diana, que fazia umas bonecas
com uns olhos grandes.
Quando eu mostrei meus
desenhos a Gilda respondeu: “Infelizmente, não tenho espaço para você nesse
momento, mas bolei uma matéria sobre pessoas que estão despontando nos mais
diferentes segmentos de arte, e na moda
e vou entrevistar você”. E foi assim que eu vi meus desenhos publicados
pela primeira vez no Caderno B – na
época, o JB era o máximo. Tanto que,
depois dessa primeira entrevista, uma perua da moda disse: “Como é que esse
garoto que veio do interior sabe abrir a boca?”. (risos)
Qual era o nome da
sua loja?
Luiz de Freitas de saia, em São Paulo, onde realizou, nos anos 80, época do Grupo Moda Rio, um desfile com o estilista francês Jean Paul Gaultier, com patrocínio da Trevira. |
Os preços eram altos – e
chamavam a atenção. Lembro que uma vez o Moraes Moreira foi ao programa do Jô
Soares e ele [o apresentador]
comentou: “Que linda camisa! Você comprou em Nova York?”. E o Moraes: “Não,
comprei numa loja aqui em SP, a Mr. Wonderful!”. E então o Jô: “Então, você
está com grana....” Tive de mandar uma correspondência para ele, explicando que
não era bem assim. Eram, acima de tudo, roupas diferenciadas, usadas por
artistas.
Você também teve uma
“clínica de moda”. Como foi isso?
A ideia nasceu numa época em que eu fiz uma viagem a Nova York. Eu
viajei muito, desde cedo: interrompi minha vida de estudante para me dedicar a
moda e tinha como meta sair do Brasil, conhecer a Europa e muitos países bem
exóticos, para me inspirar... Pois foi em Nova York que eu conheci a casa de um
rapaz moderno – gay de alma – onde todos os armários eram de portas abertas,
uma coisa muito linda. Então eu pensei: os homens no Brasil querem isso... Mas
eu também achava que eles não estavam prontos para aceitar tanta mudança,
porque eram muito machistas.
Socialmente, os homens se
vestiam muito mal. O homem brasileiro era conhecido pela cafonice. A lapela do
paletó era grande demais, o colarinho brigando com o paletó, a calça caindo em
cima do sapato – era um desastre! Esse era
o perfil do brasileiro. Então, meu trabalho com moda masculina foi de
fora para dentro. Queria provocar os homens, com minhas roupas, chamando-os de
“Mr. Wonderful” – mas antes eu precisava prepará-los psicologicamente.
Foi assim que decidi abrir
uma clínica de moda, que ajudasse a
implantar um comportamento moderno, com estilo de roupas, num ambiente estiloso. Era toda decorada com móveis
antigos de hospital. E parecia mesmo uma clínica de estética. A gente
conversava, discutia – em suma, fazia a cabeça dos homens. Eles já saíam de lá
com as novas roupas, levando na sacola aquelas com que tinham chegado à loja.
Tomavam o famoso “banho de loja”.
Nessa época, você se
tornou famoso por causa do apoio da mídia, não é verdade?
Luiz de Freitas e a maravilhosa Veluma, primeira modelo negra brasileira. |
Os manequins ficavam circulando todos muito coloridos e a repórter
perguntava para as mulheres que trabalhavam no local se os maridos usariam
aquele roupa. Isso gerava uma discussão positiva entre elas – que confessavam
que não gostavam que seus maridos fossem caretas.
Em suma: você criou
um novo conceito em moda masculina...
É verdade. Aliás, tenho passagens muito engraçadas a esse respeito.
Certa vez,
uma mulher argentina entrou na loja e começou a escolher e comprar
roupas... para ela. Num dado momento, ela parou para fumar um cigarro e disse
que estava adorando – e então perguntou onde poderia comprar roupa para o
marido. Aí eu disse, sorrindo, que ela já estava comprando numa loja de roupas
masculinas (risos).
Luiz de Freitas a com a modelo Lampito, na época em que criou a etiqueta Mr. Wonderful. |
Mas como (e por que)
todo esse sucesso acabou?
Porque no início da década de 1990 veio o Plano Collor, que abriu a
exportação da noite para o dia – e ferrou todo mundo. Eu simplesmente fali,
porque não estava estruturado para essa “abertura dos portos”. O meu público
era de artistas, que queriam roupas diferenciadas e não queriam se vestir como
o público deles. Além disso, meu
dinheiro ficou preso, assim como o dinheiro dos artistas – a minha clientela.
Muitos perderam dinheiro, eu mesmo não estava estruturado. Era eu quem bancava
toda a mídia de eventos. Hoje, você não faz nada sem patrocínio, mas eu sou de
uma fase anterior a esses esquemas. Ganhávamos de um lado e perdíamos do outro
– porque bancávamos tudo, de cabo a rabo.
Você pagou caro pelo
seu pioneirismo...
Pois é. Toda essa época foi
muito adversa. Outra coisa: era eu quem vestia o pessoal do programa Globo Esporte da TV Globo. Botei os
apresentadores com camisas de uma mesma cor, vesti blazers
nos apresentadores de futebol – e fiz tudo isso sem ganhar pela “consultoria”.
Quando a Marluce entrou no lugar do Boni, passou a pedir três orçamentos. E eu
cobrava 42 reais por uma camisa de manga curta – enquanto o pessoal de São
Paulo apresentava orçamento cobrando 12 reais! Na verdade, os paulistas queriam
desbancar a turma do Rio, porque quem inventou o boom da moda foram os cariocas. E os paulistas vieram atrás da
gente...
Você chegou a
participar daqueles esquemas de permuta de roupas com artistas?
Nunca! Aliás, até hoje eu rezo pela alma do Dr. Roberto Marinho, porque
ele mudou esse conceito: ele recomendava às funcionárias que comprassem e até
negociassem o preço, mas que sempre pagassem pelas roupas e nunca pedissem emprestado. Porque as lojas já enfrentavam a
produção do cinema nacional, que não tinha um tostão... E as produções de
teatro eram pior ainda! Sem falar das produções de anúncios para as agências de
publicidade, cujo boom aconteceu
depois da moda: os diretores de arte das agências mandavam seus funcionários
pedirem roupas emprestadas, mas depois nem nos davam o crédito nos anúncios...!
Outro caso: certa vez, uma moça pediu uma gravata borboleta emprestada para o
Roberto Carlos, o REI! Nessa, eu não aguentei: “Olha, se Roberto Carlos sonhar
que você está pedindo isso emprestado, manda você para a rua imediatamente.”
Existe preconceito em
relação quem faz moda no Brasil?
Claro que existe. Principalmente quando você ganha dinheiro – então, é
uma ciumeira danada! Muita gente não entende que existe também o fator sorte, a
competência administrativa... Eu acho que moda é arte, mas tem gente que ainda
se pergunta se moda é cultura...
E como você vê esta questão da
homofobia?
Isso é uma coisa antiga, não é mesmo? Aliás, sobre este ponto, eu me
lembro de uma história muito engraçada do Clóvis Bornay. Certa vez, o governo
de São Paulo resolveu fazer um baile carnavalesco com desfile de fantasias no
Teatro Municipal, semelhante ao do Rio de Janeiro. Então, lá foram os
concorrentes de fantasias, daqui – todos
gays, cada um com sua fantasia mais caprichada. Quando acabou o desfile, depois
da classificação, os candidatos foram descansar no ônibus. Era bem tarde da
noite. Então, aqueles velhinhos insones, que moravam na região e saíam de
madrugada para a rua, disseram: “Estão vendo ali, aqueles rapazes? São todos
viados!”. O Clóvis Bornay escutou e chamou o homem: “Moço, o senhor disse que
nós somos todos viados. Mas viado é quem dá o cú – e nós somos artistas!”. Acho
que isso resume bem o que eu penso.
Quando você assumiu
sua homossexualidade?
Foi no início da década de 1980. Mas minha história sexual já vinha lá
de trás, porque eu já me deparava com a homossexualidade lidando com as roupas
femininas. Quando a roupa masculina entrou na minha vida, foi uma coisa mais
definitiva, uma virada comportamental (antes, eu só fazia roupa feminina). Tudo
está ligado à costura, é claro: aos 12 anos eu ensinei moda a um amigo e aquela
foi minha primeira manifestação de que eu me identificava com pessoas do mesmo
sexo. Mas achei que era quase impossível dar ênfase a isso, a não ser através
da costura.
Essa sua descoberta
da homossexualidade gerou alguma angústia?
Certamente, gerou angústia e sofrimento, porque é uma coisa muito
difícil. Porque na primeira adolescência a pessoa já se depara com toda uma
série de dificuldades “normais” – e ainda por cima essa! Graças a Deus, eu
consegui superar muito bem essa situação porque eu ganhava dinheiro num
ambiente em que havia muita dureza, à minha volta. De certa forma, o dinheiro
se sobrepunha à questão do sexo.
No início você tinha
algum parente com quem pudesse se abrir?
Não, tinha era uma dificuldade muito grande. Além do ambiente machista
da minha família, eu pertenço a uma geração que não fazia perguntas – era tudo
na base da “boca-de-siri”... Ninguém questionava, e se alguém desconfiasse,
fingia que não sabia de nada. Nunca vieram me perguntar de quem eu gostava, ou
se eu gostava de alguém... E ir a um psicanalista era uma coisa muito rara,
caríssima, inacessível à classe média. Só os muito ricos é que faziam, na
época, terapia no Brasil.
Minha mãe gostava muito de
mim, é claro – principalmente porque eu ganhava dinheiro e podia dar conforto a
ela. Mas ela também admirava muito meu
talento. Tanto que, quando fui fazer o Globo
Repórter com ela, fiz questão de
mostrar sua maquina de costura e dizer: “Eu comecei nessa máquina, de mamãe!”.
No dia seguinte, ela ofereceu um almoço às amigas, para comemorar essa
participação no programa.
Mas o fato é que,
sexualmente, eu nunca me abri para minha família. Nunca houve perguntas. Até
hoje. Para eles, sou um artista assexuado. Mas a verdade é que minha situação
financeira se sobrepôs à minha sexualidade. E a verdade é que eu soube ser
grato, e retribuir. Meus tios se cotizaram para pagar meus estudos, meu curso
ginasial – o que me ajudou na profissão, porque me deu cultura. Resultado: dei
uma casa para cada um do meus três tios. Pois não se pode ser estilista sem ter
cultura!!
Existe algum outro
gay na sua família?
Existe sim: um primo e um tio – mas são gays “de alma”, que não botaram
para fora. São muito mais do que simpatizantes, pessoas altamente sensíveis à
causa. Aliás, eu tenho lido bastante
sobre essas coisas: dizem que, quando a mulher está no terceiro mês de
gravidez, pode haver uma perda do hormônio masculino. Acredito que seja algo
assim. O fato é que eu conheço oito irmãos gays de Uberlândia. Somente a irmã,
a nona, não é.
Durante algum tempo
você teve uma participação bastante ativa em favor dos homossexuais.
Sim. Eu trabalhei diretamente pela causa gay: nos anos 1980, fundei um
movimento chamado FALE AIDS, que tinha sede no Centro do Rio – e não existe
mais. Na época, estavam discutindo a questão das células T4 [um tipo especial de glóbulos brancos que
desempenham um papel importante e central no sistema imunológico do corpo
humano] e o Governo só queria dar medicamentos – o chamado coquetel – para aqueles que estavam com
as taxas muito baixas. Resolvi fundar o movimento justamente para poder doar os
remédios. Era só isso o que nós fazíamos: distribuir o “coquetel”.
Fiz um desfile de moda no
Barra Shopping e coloquei 30 aidéticos
na passarela – homens, mulheres e crianças – que entravam com uma faixa
dizendo: “O coquetel é para todos!”. Para mim, a moda só tem representatividade
por ser comportamental. Depois, o próprio Governo passou a distribuir os
medicamentos para todos – mas antes, no início, nós pedíamos dinheiro para
pessoas. Chegamos a fazer um show com
a Elba Ramalho no Teatro Rival. O grande problema, nessa época, é que os aidéticos
morriam porque não tinham dinheiro para comprar os medicamentos.
O que você acha das
agressões aos homossexuais, que são praticamente diárias no Brasil?
Sem dúvida isso é um absurdo, porque é a mesma situação da mulher. No
fundo, o grande problema é a hipocrisia. A igreja católica não aceita o
homossexual. A Lei Maria da Penha já é uma realidade, uma grande conquista –
mas não se criou o equivalente para os gays. Acho que é uma coisa cultural. As
próprias mulheres não interpretam a Lei Maria da Penha corretamente, porque são
preconceituosas. Há o maior descaso quando um gay denuncia algo no Brasil.
Resultado: um gay é morto quase todos os dias.
Qual a maior ameaça
para os homossexuais: os skinheads,
os políticos, os garotos de programa ou a sociedade como um todo?
Acho que é tudo isso junto! Todo mundo é um pouco culpado,
principalmente os partidos, que deveriam ter uma voz, fazer mais pressão. Mas
acontece uma triste realidade: gay não vota em gay, mulher não vota em mulher –
aliás, elas não vão nem a médicas mulheres, sabia? É claro que isso não começou
agora... Hitler colocou os gays nos campos de concentração. Cuba e a Rússia
botavam os gays em prisões. E, mais lá atrás, havia a Santa Inquisição... Quer
dizer, é uma situação mais geral, e muito grave. Eu procuro me manter sempre
informado, querendo ser quase um especialista no assunto.
Por que você acha que
as pessoas, em geral, não assumem sua homossexualidade?
Isso também é um drama muito antigo. E é um erro. Aliás, eu não tenho
amigos homossexuais que vivem “dentro do armário” porque eu não confio em
pessoas que não se assumem. Não servem para mim como amizade. Por isso é uma
questão de caráter: é fundamental que o ser humano seja autentico. Também não
me relaciono com gay casado com mulher. Enfim, meus amigos são todos muito bem
resolvidos com sua sexualidade. São felizes, maravilhosos, e eu os respeito
muito.
O governo do PT tem
ressarcido os presos políticos. Por que você acha que nunca se ressarciu a
família de um homossexual assassinado?
Mais uma vez: é uma questão cultural, de preconceito. Isso é uma
verdadeira doença, que não acaba da noite para o dia . Está entranhado na
sociedade brasileira. No fundo, o brasileiro não tem preconceito contra
dinheiro. Uma amiga minha, escocesa, dizia uma grande verdade: “Dinheiro não
tem preconceito”. É isso mesmo: dinheiro não quer saber na mão de quem está. Eu
mesmo já senti isso na pele. Nunca sofri preconceito porque tive dinheiro, e
recebia em sociedade com champanhe francesa, naturellement ...!!
Você não acha que
também é preciso investir numa educação mais comprometida com estes temas?
Sem dúvida! Ainda bem que estas coisas estão mudando. Tempos atrás, o
filho de uma conhecida jornalista de moda deu uma porrada num menino que quis
segurar o pinto dele no banheiro da escola. A jornalista deu uma bronca e
corrigiu: “Isto não se faz, não admito. Você tinha que dizer para o outro
menino que essa não era a sua, e não bater”. Mas nem todos têm esta mentalidade
mais aberta. Por exemplo, tenho um amigo que estudou num colégio
de padres: uma vez, ele segurou o pinto de outro garoto. Aí chamaram
psicólogos e os pais deste meu amigo – numa tentativa de curar a gayzisse dele.
Não adiantou nada: hoje ele continua gayzíssimo, feliz e muito realizado
profissionalmente: fala seis idiomas, fluentemente!
Luiz de Freitas e o jornalista Antonio Jorge, nos anos 80, mais precisamente no dia da inauguração da loja Mr.Wonderful em Amsterdam, Holanda. |
Você fala pouco de
seus amores...
Sou o último romântico. Tudo na minha vida vem através de uma paixão. A
dona do ateliê de que lhe falei, a Mary Galvão, se apaixonou por mim, e foi o
primeiro romance assumido que tive. Porque até então eu achava que só gostava
de homem, e até já havia tido um caso no ginásio – aquele rapaz a quem ensinei
tudo, que alfabetizei na moda. Foi uma paixão que virou parceria profissional.
Ele tornou-se sócio quando abri uma indústria. A outra paixão impressionante
foi a Mary, que foi minha amante. Ela era casada com um delegado de polícia,
que gostava mais de cachorro do que das pessoas. Tinha quatro filhos
adotivos.
Como você
“sobreviveu” à Aids?
Na época do boom da doença, eu
morava em Nova York e corria riscos, porque não usava preservativo. (Pois é,
parece que existem organismos que não pegam a doença...) Eu tinha o
comportamento como o de todo mundo, talvez um pouco menos promiscuo, mais romântico.
No fundo, eu sou um milagre ambulante. E, já que estou falando das minhas
paixões na época (entre os anos 70 e 80) eu tinha um companheiro, um namorado
holandês lindo de morrer. Ele foi uma grande paixão, uma coisa extraordinária.
Um romance que durou 18 anos, e só acabou porque eu o mandei embora. Hoje ele é
casado e tem filhos, mora na Holanda. Tornou-se um dos maiores importadores de
suco de laranja do Brasil.
E atualmente? Você
ainda luta de alguma forma em favor da cidadania dos gays?
Eu procuro estar sempre atualizado: acompanho mundialmente os
acontecimentos, aqui e nos países mais adiantados. Interesso-me muito por isso
porque tudo se aplica. É lamentável: hoje, com a globalização, deveria haver um
contexto geral, mais igualitário, mas infelizmente não é assim.
Mas você não se
aposentou: ainda trabalha, por exemplo, para o carnaval...
Há 10 anos trabalho com o Carlinhos de Jesus, fazendo figurinos para
escolas de samba. A parceria começou quando a Mangueira ia desfilar com o
enredo de Chico Buarque e o Carlinhos, que foi meu cliente na loja, perguntou
se eu não queria fazer o figurino. Eu disse: “Essa não é a minha praia, mas
enfrentar desafios é comigo mesmo!” Eu adoro o novo, como não iria aceitar?
Então fizemos os Malandros da Lapa, que foi um sucesso extraordinário, e
ganhamos o primeiro Estandarte de Ouro [prêmio
do jornal O Globo]. E assim começou a parceria, que dura até hoje. Acho que
dou sorte. (risos)
Em suma: você não
ficou rico.
Não de jeito nenhum. Até hoje eu trabalho para me sustentar.
Você acha difícil ser
empreendedor no Brasil?
Principalmente na moda: fazendo arte, acho muito difícil. Ainda não vi –
e me pergunto se algum dia vou ver...Será? Vou me deitar ...!
Boa tarde! Em nome de José Augusto Bicalho, desejo contato de Luis de Freitas para reaproximação da amizade dos dois. Pedir ao Luis fazer contato. Grata
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