José Bernadino

José Bernardino Cardoso Júnior – bancário

José Bernardino Cardoso Jr. fez carreira no First National Bank of Boston, onde chegou a gerente e se aposentou. Mas acompanhou de perto o universo da moda feminina graças ao seu casamento de 35 anos com o jornalista Roberto Barreira (1943-2002), criador (junto com Justino Martins) da famosa revista Desfile da Editora Bloch. Discreto e introvertido, nem por isso deixou de apoiar campanhas em favor dos portadores do HIV – e responde a qualquer pergunta sobre sua sexualidade, sem levantar bandeiras, mas com objetividade: “O mundo, de um modo geral, é muito preconceituoso”.


Do alto de seus 76 anos (que, por sinal, não aparenta), você afirma que nunca sofreu preconceito. Isso se refere à sua família ou às pessoas em geral?

José Bernardino de chapéu, tomando sol
Quando afirmo isso, refiro-me às pessoas em geral. Acredito que deve ter havido comentários a meu respeito, pelas costas – mas nunca foram coisas que chegassem a me atingir. Minha história com o Roberto [Barreira], por exemplo: era impossível que alguém não soubesse. Tanto que minha sobrinha adorava - e ainda hoje - adora o Roberto – assim como a família dele me adora também. Foi um negócio que se tornou absolutamente normal. Eu acho que nosso convívio, da forma como foi se consolidando, ajudou a criar este clima natural.

Mas você sabe que existe muito preconceito neste sentido no Brasil, não é?

Sem dúvida! O Brasil é um país muito preconceituoso. E não é só contra os homossexuais, mas também contra negros e deficientes físicos, por exemplo. Por incrível que pareça, até hoje ainda existe algum preconceito contra a não-virgindade. Já imaginou? Então eu acho que este tipo de preconceito não vai acabar nunca. Mas eu nunca fui alvo do preconceito. Digo e repito: nunca fui.

Como foi sua carreira profissional?

Eu trabalhava no Banco de Boston – onde inclusive me aposentei. Trabalhei com o [Henrique] Meirelles [presidente do Banco Central, no Governo Lula]. Quer dizer, ele trabalhou comigo, porque quando entrou eu já era gerente do banco. Era um chato, mas tudo bem. (risos)

Uma vez o [jornalista e humorista] Stanislaw Ponte Preta, que era muito preconceituoso e machista, escreveu o seguinte: “O homossexualismo é um problema e a frescura é uma exorbitância”. Mas você é muito discreto, sem afetação. Será que isso não o ajudou a não ser vítima do preconceito?

Pode ser, sim. De certa forma, eu sempre tratei de seguir aquela atitude que atualmente está na moda no exército americano: “Não pergunte, não diga”. Se me perguntassem, eu diria eu sou. Mas não iria chegar para ninguém dizendo: “Olha aqui, eu sou gay!”, ou qualquer coisa assim. Ao longo de minha vida profissional, alguns colegas perguntaram. E eu dizia: “E daí? qual é o problema?” Trabalhei, por exemplo, com [o artista plástico] Mário Borriello, que ganhou um campeonato no Salgueiro. Era uma pessoa que, para dizer alô, fazia toda uma coreografia “típica”. Mas eu não. Claro que, às vezes, vinham me perguntar, porque não me viam em companhias femininas. Evidentemente, eles ficavam dando tratos à bola... “Você não tem namorada?” E eu: “Não, qual é o problema?”. Mas nunca me perguntaram diretamente, nem eu me senti discriminado ou prejudicado no trabalho.

Quando foi que você e Roberto se conheceram?
Roberto Barreira e José Bernardino Cardoso Júnior na Europa

Foi um encontro casual, num bar em Copacabana, no final da década de 1960. Logo depois, começamos a sair juntos. Mas aconteceu que logo depois ele viajou a trabalho – ele já estava na [Editora] Bloch desde muito cedo. A viagem foi um negócio tumultuado porque a família não queria que ele fosse. A Elza [tia de Roberto Barreira] chegou a pedir para o Adolpho [Bloch] não mandá-lo. Mas ele acabou tendo que ir – e estava em Paris quando, pouco tempo depois, estourou o movimento estudantil de 1968... Roberto ficou dois anos e meio em Paris e dois anos e meio na Itália. Cheguei a ir duas vezes à Europa, nesse meio tempo. Quando ele voltou é que nosso relacionamento engrenou de fato.

E vocês passaram a morar juntos?

José Bernardino Cardoso Júnior e Roberto Barreira na Europa
Sim, mas de uma forma um tanto engraçada, no início. (risos) Roberto voltou para dirigir a [revista de moda] Desfile, mas não queria que a família soubesse que ele já estava aqui – era uma daquelas loucuras do Roberto. (risos) Para todos os efeitos, ele continuava na Europa, mas na verdade já estava vivendo comigo, na minha cobertura no Catete. A avó dele ligava para mim, perguntando se eu tinha noticias dele. Eu procurava chamar a atenção dele: “Cuidado... Um dia você  vai passar na rua e esbarrar no seu pessoal da [rua] Marquês de Abrantes, hein?” Até que um dia ele resolveu “chegar”: preparou todas as malas, chegou, fez toda aquela encenação. Mais tarde, eu fiz uma permuta do apartamento do Catete por um no Cosme Velho – onde, então, Roberto se instalou. Seu motorista sempre ia lá, buscá-lo. Na verdade, sempre foi do conhecimento que vivíamos juntos – tanto da família dele quanto da minha. Mas nunca houve nenhum tipo de comentário ou de restrição.

E por que o relacionamento chegou ao fim?

José Bernardino Cardoso Júnior e Roberto Barreira na Europa
Bem... No final já não estávamos tão unidos – embora ainda muito ligados. A verdade é que houve um desgaste natural. Um grande problema que houve foi o apartamento que a avó do Roberto deixou para ele, quando morreu. E, por razões familiares, ele teve que se mudar. E eu permaneci no meu. Mas ele ia sempre para minha casa, e até dormia uma vez ou outra por lá, mesmo sem haver mais nenhum relacionamento mais íntimo. Nós continuamos muito amigos – e muito ligados. E as coisas estaram assim até que houve a falência da Bloch, e ele entrou naquele estado depressivo... Pegou um câncer, que foi uma consequência nítida disso tudo. Ele começou a se sentir mal em março de 2002 e morreu em novembro. Nessa época, eu me instalei no apartamento dele – eu e minha empregada ficamos lá por muitos dias. Ela trabalha até hoje comigo, e está a par de toda a história. Como eu disse, nunca houve problema.

Que tipo de câncer Roberto desenvolveu?

Foi daquele que aparece no meio do tórax, na região do mediastino [uma das três cavidades da torácica, espaço entre as regiões pleuropulmonares]. Roberto fumava muito, mas seu câncer não foi provocado pelo cigarro. Se não foi só a depressão, pode ter sido uma infecção provocada pelo ar refrigerado. Porque, na verdade, Roberto acendia um cigarro, mas não fumava: deixava queimando no cinzeiro. Quando eu resolvi parar de fumar, há uns oito anos, ele também parou.

E o filho que vocês criaram?

Chama-se Filipe, e está com 34 anos. Era filho da Berta, uma empregada minha. Hoje ele é DJ e me enche as medidas, porque toda hora me solicita: “Dindo, vamos fazer isto, vamos fazer aquilo”. (risos) Não chegamos a adotá-lo, porque na época isso era muito mais difícil. Foi um menino e um rapaz muito bonito – tanto que Roberto o fotografava muito para revista, junto com a Xuxa e com mais não sei quem... Todos os dias ele me liga.

E o Felipe sabia de toda a realidade? Chegava a fazer perguntas?

Claro que ele sabia – mas nunca fez perguntas. Vive a vida dele, numa boa, e se dá muito bem comigo. Onde quer que ele me encontre sempre me beija, sem nenhum problema. É um cara muito bacana.

Quando foi que você descobriu que era homossexual?

Sou de uma família simples e muito conversadora, uma mistura e português com gaúcho. Meu pai era comerciante, atacadista de aves – um negócio bastante duro. Já minha mãe era dona de casa. Enfim, uma vida comum. Durante a adolescência eu cheguei a namorar algumas meninas. Mas era um negócio que eu não conseguia levar adiante... Havia alguma coisa que eu não identificava, talvez por falta de informação.
Até que uma vez, por volta dos meus 17 ou 18 anos, meu pai (que era muito rígido) me mandou para um exílio em Belo Horizonte, na casa de uns sobrinhos dele, quer dizer, primos meus – tudo por causa de algumas notas baixas no colégio. Então um dia, um desses primos veio para cima de mim... e aquilo me deu uma despertada. Não chegou a acontecer nada mais “radical” (risos), mas foi a partir desta época eu comecei a ficar mais atento para a questão. No princípio, fiquei muito apavorado com aquilo, principalmente porque minha família não me dava nenhuma orientação... Mas depois as coisas foram acontecendo mais naturalmente.

E como seus pais reagiram a isso?

Veja bem, eles nem perceberam. Se souberam, é uma coisa que até hoje não posso afirmar. Podem até ter deduzido algo – mas nunca abordei isso com ele. A vida sexual era um assunto de que não se falava lá em casa. Além disso, minha mãe morreu muito cedo, quando eu tinha
21 anos, e já estava assumindo de fato minha homossexualidade.

Então você passou a viver a homossexualidade de uma maneira mais tranquila.

Talvez mais tranquila, mas sempre com o receio de ser descoberto – e não exatamente de ser vítima do preconceito. Não queria que as pessoas soubessem: este simples fato já me apavorava, tive uma formação católica.

Como era a convivência com Roberto?

Roberto Barreira e José Bernardino Cardoso Júnior
Ele era uma figura muito controvertida. Em primeiro lugar: era muito protecionista. Quando gostava de uma pessoa, ele protegia abertamente. Até hoje ainda o acusam de ter protegido funcionários totalmente incapazes. Ele realmente fazia isso. Mas, ao mesmo tempo, ele lançou a primeira produtora negra de moda do Brasil – a Haydée Garcia.
Ele a adorava.
O trabalho absorvia muito o Roberto, além do normal. Ele desfrutava de certo prestígio junto ao Adolpho Bloch – que de fato gostava muito dele. Resultado: Roberto acabou ficando muito ligado à família Bloch. Ele adorava o Adolpho, que ia almoçar com ele apartamento do Flamengo. Se havia o casamento da filha de não sei quem, era Roberto quem preparava tudo. Ele vestia a camisa da empresa – e da família.

Você chegou a exercer alguma atividade em prol da causa homossexual?

Não, sinceramente. A única coisa com que me envolvi neste mundo (e mesmo assim de uma maneira bastante discreta) foi em defesa dos aidéticos. Participei de campanhas. Mas é claro que isto eu poderia ter feito mesmo não sendo homossexual.

O aparecimento da Aids trouxe alguma mudança? Acarretou uma mudança na sua relação com o Roberto?

De jeito nenhum. A gente conversava a respeito, porque o Roberto era jornalista, e participava de muita coisa – era muito bem informado. Ele tinha um medo tremendo por causa dos amigos, que não se precaviam e contraíam a doença. Nessas horas, baixava o “Doutor Roberto” – era com todo mundo... Por exemplo, era só bater um vento mais forte e ele ligava para a avó, dizendo: “Fecha a janela, porque está ventando!”. (risos) Até hoje a Diva [mãe de Roberto] tem as mesmas manias.
Roberto definitivamente não se envolveu com movimentos – embora sempre se preocupasse e editasse matérias sobre Aids na revista Desfile. Mas eu me lembro de um rapaz chamado Cássio Barsante. Roberto foi muito incentivador e protetor com ele, no sentido de assegurar a ele o direito ser o que ele era,  garantindo o lugar dele na redação. Até a morte dele – que foi de Aids – foi o Roberto que se encarregou de notificar à família. Mas, de resto, nunca levantou bandeiras. Nem eu.

Você não viveu nenhuma experiência negativa ou traumática?

Bem, não sei se seria um exemplo de experiência negativa – mas foi um negócio extremamente desagradável. Ocorreu com uma prima do Roberto. Trata-se de uma pessoa extremamente difícil. Uma vez, ela insistiu para que eu fosse até a casa dela. Sempre tive um pé atrás com ela – mas acabei aceitando o convite. Quando cheguei lá, a casa estava cheia, e todos estavam bêbados. E ela, que estava na cozinha, conversando com uma amiga (lembro-me muito bem da cena!), virou-se e me apresentou assim: “Ah! Esse é o Bernardino, o marido do meu primo Roberto!”. Minha vontade foi de dar uma porrada nela! Mas, na hora, tive que me controlar... Não por ela ter dito aquilo, mas pelo modo desrespeitoso e frívolo: Roberto era uma figura pública, ela não tinha o direito de expô-lo daquela maneira. Foi uma agressão desnecessária. Não propriamente a mim – que estava ali (desculpe a expressão) “cagando e andando” para ela. Mas ela se referir assim ao primo – num grupo de jornalistas! Francamente!

Roberto era mais “solto” do que você, não é mesmo?

Sim, inclusive porque ele vivia num meio que permitia isso. Além do mais, ele era muito expansivo, falava muito, essas coisas. Já eu às vezes me recolhia um pouco. Meu temperamento é mais para dentro.

O que você acha do homossexual afetado, que “solta plumas”?

  José Bernadino, ao fundo, diversas capas
da Revista Desfile, Bloch Editores
Eu, pessoalmente, não gosto – porque não acho que seja necessário. Isso foi uma postura que eu sempre adotei: para mim, ser gay não é nenhum problema, mas prefiro não conviver com estes ambientes de muita afetação. Veja, por exemplo, o caso do [teatrólogo] Mauro Rasi – que morreu de câncer na próstata, coitado! Ele era homossexual e sabia se comportar. Aliás, dentre os amigos do Roberto, ela era a pessoa de quem eu mais gostava.

O [ator] Sérgio Brito afirmou, tempos atrás, que não existem bissexuais. Qual a sua opinião?

Eu acho que existe. Eu conheço várias pessoas, que de um modo geral admitem a coisa numa boa. De mulheres eu não tenho conhecimento – mas homens bissexuais eu conheço vários.

E como você se relaciona com a homossexualidade feminina?

Tenho uma amiga homossexual, que se casou no Consulado de Portugal com uma portuguesa. O casamento delas saiu até no jornal. Ela me mandou o convite – mas eu não fui, porque não tinha o que fazer lá. Não saberia como me comportar. (risos) Sou um cara que às vezes me sinto meio bronco...
O que eu sei sobre as relações entre mulheres é que costumam ser muito cheias de violência, porque sempre uma delas se comporta como a chamada “ machona”. Ou seja, faz o papel tradicional do homem. Talvez hoje em dia já nem seja tanto assim. Estou me referindo à época em que eu ia com o Roberto ao Baile de Carnaval da [gafieira] Elite, onde elas se comportavam dessa maneira. E aquilo me chamava muito a atenção. Hoje em dia você está perto de duas mulheres que vivem juntas e é mais natural – nem demonstram. Como as minhas amigas, que se casaram no consulado...

Você acha que existe mais repressão social em relação à homossexualidade feminina?

Não, não acho. Justamente porque a homossexualidade feminina não é tão evidente. É muito menos perceptível. No caso do masculino, é mais fácil: os pequenos gestos denunciam. Além disso, é muito comum que, desde pequenas, duas meninas saiam de mãos dadas. Ou seja, no final, acaba sendo menos acintoso. Você entra num shopping e vê várias moças de braço dado, fazendo compras.

E como é hoje em dia seu círculo de amigos?

Simplesmente, não tenho. Eu me isolei muito – e reconheço que a culpa é minha. A partir da morte de Roberto, fiquei praticamente sem amigos. Ainda tenho alguns, mas já não os frequento. Acho que nem tenho mais idade. Vivo em casa a maior parte do tempo. Ainda vou ao cinema e ao teatro – mas, em casa, fico no computador. De vez em quando, viajo: tenho uma sobrinha – que é como uma filha – que mora em Santa Fé, na Argentina. Também vou muito a Belém (Pará) e a Fortaleza (Ceará), onde tenho uma família muito amiga.

Roberto foi seu único companheiro?

Que eu possa chamar de companheiro foi, sem dúvida alguma!

Que balanço você faz agora de sua vida?

Bem, essa foi a maneira como eu conduzi minha vida – não sei se de caso pensado. Na verdade, nunca estabeleci um roteiro: deixei a vida acontecer, e ela foi acontecendo. Mas não posso dizer que foi plenamente satisfatório. Acho que faltou viver momentos que realmente me agitassem, sei lá. Mas veja bem: eu tenho consciência de que nada disso tem a ver com a homossexualidade, e sim com meu jeito pessoal de ser. Só sei que a maturidade consiste neste desafio: aprender a conviver com as frustrações.
Às vezes, eu ficava com medo de sair daquele meu jeito mais sóbrio de viver e cometer alguma besteira, mais à frente.  Há uma coisa que eu repito que já se tornou um lugar comum: a partir do momento em que você larga o peito materno, começa a ser direcionado para a vida. É aquela história: isto tem que ser  feito assim, isto é assim, isto é certo e isto é errado. Ou seja, aos poucos, você vai se inserindo nos dogmas da sociedade.

Então você não acha que seja uma repressão específica aos homossexuais?

Não. Qualquer sociedade, por mais liberal que seja, é sempre repressora. Não tem a menor dúvida. Veja só: não pode beber, não pode fumar... Pelo amor de Deus! Um ser humano merecia ser livre, para fazer o que bem quisesse, por sua própria conta e responsabilidade. Isto também nada tem a ver com a homossexualidade – é geral. É lógico que isto influencia muito a vida do homossexual – talvez não de maneira consciente, mas você acaba se policiando. Fica com medo de ferir Beltrano ou ofender Sicrano.  Ou então parte para o esculacho total, que é o que se vê por aí.

Ou seja, é muito difícil você viver a homossexualidade plenamente sem grilos. Simplesmente, não dá. Porque você sempre tem medo de alguma coisa, precisa sempre tomar certos cuidados. Você tem medo de que um porteiro faça algo, ou que um colega de trabalho o prejudique... E por aí vai. Não é apenas no Brasil: o mundo, de um modo geral, é muito preconceituoso. 

2 comentários:

  1. Sempre gostei mt.dele foi meu chefe no banco de Boston uma pessoa MT.legal sabia colocar todos em seu devido lugar sempre foi MT.sincero e amigo tbm.Bjs Bernardino da Nena.

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  2. Bela entrevista Ruth. Parabéns.
    O Bernardino é uma bela figura. Quanto ao nosso Roberto Barreira, morro de saudades. Grande editor. Grande chefe e amigo. Bjos

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